terça-feira, 31 de março de 2009

Luzia

A primeira vez que amei alguém foi aos sete anos de idade. Soube num domingo, num passeio de carro com meus pais pela cidade. Chovia muito. Eu ia sozinho no banco de trás, talvez mal humorado, contemplando em silêncio a chuva na calçada. Foi quando ela surgiu. Luzia. Uma menina da minha sala. Nunca soube o que ela fazia ali, sozinha na chuva, no centro da cidade. Estava encharcada, caminhando devagar. A cabeça baixa, os pés quase descalços arrastando as havaianas.

Passei o resto do dia perturbado. Não consegui comer. Demorei para dormir e tive sonhos incômodos. Para mim era novo. Na manhã seguinte, não sabia mais o que fazer para passar o tempo – já queria estar na escola. Queria vê-la. Queria decifrá-la. E quando finalmente estive lá, sentado em minha cadeira de palha, vendo Luzia concentrada em uma aula de Ciências Sociais, tomei a decisão mais corajosa e ao mesmo tempo natural que poderia ter tomado: fui beijá-la.

Na boca, sem nenhuma pressa.

A sala toda estremeceu. Luzia me olhava com uns olhos muito grandes e, um pouco indelicada, limpava meu beijo com as pontas dos dedos. A professora havia parado de falar: olhava para mim entre furiosa e aturdida – e nada mais no mundo se movia. Eu olhava de uma à outra, sem saber o que fazer também. Estava confuso, oco, profundamente decepcionado.

– Não tem gosto de chuva – murmurei.

Foi um amor muito breve.

sábado, 28 de março de 2009

Sentido

Na contramão do outono, vou recolhendo a poesia delicada de nascer. Para muito além do antigo vício de ver sombras, na intimidade do meu lar, onde não há ninguém, minha alma redesenha a si mesma como flor alguns segundos antes de se abrir. Lá fora não há mais culpados: todas as primeiras pedras foram lançadas à exaustão – até restarem estas mãos vazias e cansadas, mãos sem afago, mãos envelhecendo a cada dia. E um espaço deserto que só o espírito preenche, no exercício de gerar ou enxergar o que se possa chamar de Beleza. Na incidência da luz, na palavra terna, o que se encontra não será jamais algum conforto externo, que afinal não há, sendo outono, mas a música possível de um coração que ainda sente, embalando com cuidado a sua própria pulsação desordenada. O homem sensível, o homem chorando lágrimas reais não era enfim aquele que perdia, mas o que reconstrói, pai de si mesmo, irmão e filho, o abrigo sólido de uma esperança finalmente mais madura. Virá a primavera, então. E o seu nome deixará de ser colher as flores, e passará a ser somente cultivá-las, a partir de si, para quem sabe um dia compreender as que nasceram, se nasceram, naqueles outros tantos corações desordenados. Não mais do que esse pouco. Não mais do que esse sonho, agora tão distante, mas tão possível que a maior ingenuidade é ainda pensar que seja um sonho.

domingo, 22 de março de 2009

Anotações de sábado

1. A chuva simplesmente mergulhou no dia: as opções estão bastante reduzidas. Pegar a estrada só pra ver a textura da luz refletida no asfalto.

2. Deixar fluir o pensamento, sem rever, sem represar. Adágio da Sonata K. 332 de Mozart e um pacote de caramelos. Toda a realidade se dissolve numa abstração cinzenta.

3. Excessivamente melancólico. No meu caderno, estava sublinhado duas vezes. As sensações flutuam sem recursos práticos, e eu começo a duvidar de que já tenham tido um rumo definido.

4. Chegar até você. Urgentemente, porque a chuva engrossa; não mais que segurar a tua mão e te dizer que logo passa, que não estamos tão perdidamente sós, que pelo menos eu te amo o meu amor de pássaro.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Flashback

A cidade é muito grande para estar tão quieta, Nina, para contar num dedo só os poetas trágicos que, avidamente, bebem a meia-chuva nessas ruas amarelas de paralelepípedos. Só a teu lado, Nina, só quando você cruzava silenciosa a noite que eu também sofria havia algo de alegre nesta escuridão borrada. Até chegarmos à penumbra de um apartamento baixo, de poltronas velhas, de cigarros e conhaque ao som de uma irlandesa de quem nunca perguntei o nome. E eu te amava sem palavras, sem sentidos, só um deslumbramento vago pelo branco delicado da tua pele. Nina, Nina; você falava muitas coisas que eu não entendia: romancistas tchecos, dançarinas búlgaras, filósofos sul-coreanos povoavam teu apartamento como convidados óbvios – e como eu manteria o meu orgulho sem saber quem eles eram? A tua companhia era o mistério bruto, Nina, indevassável, numa solidez incômoda de tanto "agora". E agora um mais-ou-menos dentro do meu peito; não mais que um nome bêbado de meu vazio-memória, madrugadas mortas, fantasma que escorreu do meio-fio para os meus pés que são os últimos na noite do planeta.

domingo, 8 de março de 2009

Oferendas possíveis

Nem reparou na mancha negra que deixou com o dedo no botão da campainha. Olhava em volta com certa avidez, à procura de galinhas no quintal – não fazia sentido não haver nenhuma – e observou atentamente alguns detalhes da arquitetura da casa. Demorou para perceber a porta entreaberta, o rosto claro que se espremia no espaço limitado por uma corrente, o olhar de receio que ele conhecia tão bem. O menino não teria mais que doze anos. Passou a mão pelos cabelos, pigarreou, tentou parecer confiável.

– Pode dar uma maçã – disse.

Deveria ter soado mais como uma pergunta. O menino arregalou os olhos, grunhiu alguma coisa como "espera um pouco" e tornou a fechar a porta. O ruído seguinte era o de duas voltas com a chave. O homem bêbado, sujo e maltrapilho desabou sobre o degrau da varanda e escondeu o rosto para chorar. Era mesmo um exagero imaginar que teria entrado na casa. Ficou ali por um bom tempo, sensivelmente mais embriagado com a avalanche de velhas sensações, até que a voz distante do menino veio chamar-lhe de volta ao momento presente.

– O senhor não vai poder ficar aqui – dizia ele.

Estava usando roupas de escoteiro. Olhava firme para o visitante, agora com a porta totalmente aberta, e segurava uma maçã na mão direita. O homem ficou de pé e se permitiu uma olhada rápida para o interior da casa. O menino recuou um passo; ergueu a fruta em direção a ele, como se dissesse que era tudo o que ele poderia levar. Ele pegou a maçã e imediatamente levou-a à boca.

– Mas o senhor precisa ir comer lá fora – insistiu o menino.

O homem olhava para ele quase com desinteresse. Continuou a mastigar sem se mover um passo, e quando terminou disse tranquilamente, numa voz que então soou mais limpa:

– Morei aqui tinha a sua idade. – Fez uma pausa, agitou a maçã no ar e acrescentou: – Eu que plantei essa macieira no quintal dos fundos.

O menino pareceu atordoado. Para o homem, era o bastante: a confirmação final de sua vitória. Sorriu brevemente, inclinou a cabeça em sinal de agradecimento e seguiu cambaleando em direção à rua.

Quando ele desapareceu, o escoteiro calculou que aquela boa ação deveria valer por pelo menos uns dois meses. E a perfeição foi justamente não ter dito nada. Mas o fato era que não havia macieira alguma no quintal dos fundos.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Do princípio

O que é do coração pede licença pra nascer. Debate-se em palavras, fere, é ferido, envergonha-se de ser tão frágil. Não sabe o que é beleza; não atende ao que se espera: apenas nasce num pedido de desculpas, assustado de existir, trêmulo, tímido. Nem saberia o que fazer se lhe pagassem o seu preço pelo encantamento.

O que é do coração leva o seu tempo – conquistando espaços. Não pede muita coisa além do olhar atento, da lembrança de que vive; mas não rouba, não consome, não invade. Existe, e isso é tudo o que lhe cabe. No ponto em que o deixamos, como um livro e, se for quadro, tem mesmo um tempo de secar a tinta pras camadas que ainda faltam. E permanece assim, e exala o seu perfume denso.

Até que um dia, cansado de conter a própria natureza, o que é do coração escapa de si mesmo. Rompe as grades; transborda como lava e rocha e asa pra habitar um corpo – e nele pulsa, e nele acorda, e nele move: o que é do coração não tem mais volta; o que é do coração tornou-se um homem.