sábado, 30 de maio de 2009

Poema de adeus

Diremos que foram belas também as tempestades, e que somente pelo terror de sua beleza nos arrastamos tanto em pensar nelas. Muito mais belos e numerosos, porém, foram os dias de sol sobre a paisagem que se coloria intensamente pelo amor que estendíamos a ela, na embriaguez de nos olharmos antes, um ao outro, com o sorriso acolhedor e amplo da posse consentida. Assim que as minhas mãos têm esta marca; meus lábios, meus olhos, meu peito nu – todo o meu corpo agora solitário expõe a tatuagem de um dia ter provado a materialidade do teu. Obrigado, amor que amei, por ter seguido ao meu lado ao longo do tempo e da terra. Obrigado por ter sido a companheira leal e justa de meu coração crescente, sedenta como eu era de prazer e dor, pelo caminho incerto das contínuas descobertas. Obrigado por guardar comigo a mesma gama de memórias, milagres, pecados e pedras: tudo o que um rio carrega, tudo o que um rio desperta, tudo o que um rio contém e revela para a chuva que o renova.

sábado, 23 de maio de 2009

O Ator

Tinham combinado que jantariam juntos depois da apresentação, em comemoração ao fim da temporada. Francisco relutou a princípio, alegando que estava ansioso para dar início às suas férias-fora-de-época, mas o restante do elenco tratou de convencê-lo – a peça havia sido um sucesso de público e de crítica; o teatro estaria lotado naquela noite e um caso assim era tão raro para eles que seria uma heresia não comemorar. Francisco sorriu, entregando os pontos. Ser o único solteiro em toda a equipe era um motivo mínimo, infantil até, para não estar entre amigos em uma ocasião realmente importante como aquela. E talvez – pensou – se Ana Clara fosse assistir à peça ele pudesse convidá-la; quem sabe, e assim a noite estaria completa. Não voltaria a pensar no assunto. Era preciso concentrar-se em seu trabalho.

O teatro estava mesmo lotado. Mil e duzentas pessoas mergulhadas no mar negro para além da ribalta, reagindo ao menor dos gestos realizados em cena. Francisco desempenhou o seu papel com uma devoção religiosa, convencido a abandonar qualquer emoção ou pensamento que não pertencesse ao personagem. E naquela noite todos os atores contribuíam muito, embriagados que estavam pela paixão por seu trabalho, decididos a se despedir do público em grande estilo. Foi a melhor apresentação que já fizeram. Quando o mar negro se acendeu, as mil e duzentas pessoas se levantaram de uma só vez para um aplauso estrondoso. Era a consagração do artista; o melhor pagamento que eles poderiam ter.

Vertigem. Francisco não podia imaginar contradição maior: nunca em sua vida se sentiu mais só. Corria os olhos por aquelas gentes, à procura desesperada de Ana Clara, sem reconhecer um único rosto. E de repente não ouvia mais. Encontrar Ana Clara era só o que importava – não via nenhum sentido na palavra “sucesso”, não fazia questão de receber um único aplauso pelo que era apenas seu trabalho. Um trabalho como outro qualquer: como fabricar relógios, como carimbar as cartas no correio.

Somente quando as luzes do palco se apagaram e a cortina começou a ser fechada foi que ele avistou Ana Clara, na oitava fila perto da parede. Ela estava acompanhada por um grupo de amigos, e obviamente se preparava para deixar o teatro. Ela não iria vê-lo, no camarim. Não falaria com ele. Num impulso, Francisco se lançou ao corredor, pensando que seria fácil alcançá-la antes que ela chegasse à porta. Mas foi uma odisséia. A cada passo, alguém o detinha para lhe dar os parabéns pelo “excelente”, “impressionante”, “maravilhoso espetáculo”. Francisco se demorava o mínimo possível: devia soar arrogante e ingrato, mas não havia tempo nem motivos para se preocupar com sua imagem. Ana Clara estava quase saindo. Estava na porta quando ele, espremido entre um casal de velhos, conseguiu estender o braço e tocar em sua mão. Ela se virou, encontrou seus olhos. Sorriu.

Ele era um adolescente bobo e apaixonado. Tudo em volta desapareceu, e só o que havia no mundo era o sorriso iluminado de Ana Clara. Ele sorriu também, como um menino tímido. “Vamos sair para jantar”, disse, imaginando que o convite estaria implícito. Não conseguia pensar em nada melhor para dizer. Estava ocupado demais em se sentir fora do tempo.

– Onde? – ela perguntou.

Um outro rosto surgiu em seu lugar. Um completo estranho, com um brilho emocionado nos olhos, agitava a mão de Francisco e repetia que nunca em sua vida, nunca em sua vida ele tinha visto uma peça tão bonita. Francisco demorou demais para desfazer o sorriso. O mar de gente, os amigos de Ana Clara terminaram de arrastá-la para fora do teatro.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Poeta

Aquele menino nasceu com um defeito no cérebro – não, com poderes sobrenaturais – não, ele sofreu um trauma na infância – não, ele escrevia poemas, e por volta dos onze anos ele descobriu que – não, ele já passava dos vinte – descobriu que podia enxergar o inferno dos outros – não, ele decodificava os ambientes emocionais à sua volta – não, ele era um retraído incurável – não, ele podia ler pensamentos e prever o futuro – não, ele era só sensível demais e começou a perder a sanidade porque – não, na verdade ele achava tudo muito divertido, mas estava meio cansado de ouvir que talvez fosse melhor para ele procurar um psicólogo – não, um pai de santo – não, a bíblia – não, ele era índigo e tudo se explicava – estava cansado de ouvir demais quando ninguém estava realmente preocupado em entender – não, em ser um pouco mais parecido com ele – não, em deixá-lo viver a própria vida em paz – não, em explicar de que forma ele estava sendo mesquinho e egoísta – não, em parar para ouvir o que ele sabia muito bem – não, ninguém estava preocupado em parar para ouvir o que ele pensava sobre o amor e todas essas coisas que podem salvar o mundo – não, que só servem para fazer poemas – não, sobre as coisas que realmente importam, porque ele acreditava em sua cabecinha de menino – não, de fracassado – não, ele sentia em seu coração de poeta que alguma coisa estava muito errada – não, que o mundo ia acabar em 2012 – não, que usar palavras como amor e liberdade fora de outdoors não deveria ser considerado escapismo, e ele queria mudar os conceitos das coisas – não, ele queria se matar – não, ele queria ajudar enquanto era tempo – não, ele queria se matar – não, ele só queria ver a vida de outra forma – nem sempre ele queria se matar – o que ele mais queria era escrever a frase perfeita, a frase mais bonita que alguém já escreveu, a frase que ficaria na cabeça de todos pelo resto da vida para que eles se lembrassem do que realmente importa – não, não importa, mas ele queria mesmo escrever uma frase bonita – não, ele queria que nada mais precisasse ser dito – não, ele queria apenas descobrir se alguém era capaz de enxergar a mesma beleza que ele neste mundo já saturado de frases tortas.

domingo, 17 de maio de 2009

O Professor

Agradeço pela lição de hoje, mas sou eu quem não quer aprender a ter acessos de fúria. E honestamente não me importa quem você elegeu pra ser o grande responsável pelos seus fracassos: mais cedo ou mais tarde os caminhos apontarão pra dentro. É preciso crescer muitas vezes pra entender que a brincadeira não termina, e que ainda é tudo variação de ser ou não dono da bola, de estar ou não à frente no placar, de concordar ou não com as regras em um jogo sem juiz. E no final das contas, o que nos resta é simplesmente o fato de que estamos juntos, sem saber quem ensina a quem. Numa tarde eterna de domingo, sob o sol no campinho do bairro.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Instante

É a força de estar vivo que se espalha por meu sangue sempre que a palma da sua mão se encosta à palma da minha mão, seus dedos percorrendo os vãos entre meus dedos, e olhamos para longe como se estivéssemos ainda sós em mundos separados, mas tão próximos, tão iguais na superfície lisa da sua pele onde ela encontra a minha, como um par de espelhos voltados um para o outro, camadas sobrepostas de uma mesma tinta, irmãos siameses por escolha própria, e eu tenho essa impressão de que conheço a história da sua vida desde o tempo em que a maior felicidade que você podia sentir guardava-se entre os pelos de um tapete branco onde você rolava à noite, no vazio da sala, e sinto a liberdade que você foi conhecer quando soltou as mãos pela primeira vez descendo o morro em uma bicicleta azul-turqueza, e vejo com seus olhos o voraz fascínio que acendia os olhos do menino a quem você entregou o seu primeiro beijo e a vertigem da primeira noite em que se viu despida diante da nudez de um homem, e reconheço as marcas do cansaço que você sentiu nos longos anos em que procurou repouso em corações fechados, até que finalmente a vida se lembrou de ter-me feito só para o momento em que tropeçaríamos um no outro em uma loja de conveniências, ou desprendidos de qualquer noção de tempo entre as ruínas de uma civilização extinta na América Central, justificando enfim nossa presença neste mundo em que aprendemos a beber o fogo desde o coração do sol, na extremidade de um dos braços da galáxia, no universo que há na ponta dos seus dedos que afinal se fecham como um polvo sobre as costas da minha mão.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Sobre a melancolia

Quando você estiver em minha casa, leve de lá um poema do Vinícius que se chama Ausência; minhas anotações sobre Penélope; todas as músicas do Clube da Esquina. Em uma das gavetas do escritório, você vai encontrar o meu caderno de segredos revelados – amores eternos, um medo sem fim de viver – que eu gostaria que você queimasse sem pensar em ler. Uma caixinha de música na cômoda do quarto, presente muito antigo, não deve nunca mais tocar seu Pour Elise: leve um martelo. Quando você estiver em minha casa, não deixe o seu perfume em cada cômodo para eu sentir mais tarde; abra as cortinas contra o escuro; tire do vaso as flores muito secas. Na lavanderia, há sacos de lixo pretos: coloque neles minha boa memória, minha paciência para a espera, meu fascínio bobo pelas coisas que não posso ter. E, se couber ainda, leve também os fins de tarde, as noites de chuva, e sobretudo o riso interminável dos vizinhos. Não sei como me desfazer de tantas coisas. Preciso acreditar que elas jamais me pertenceram.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Como escrever seu próprio manual de sobrevivência

1. Comece registrando fatos sem nenhuma importância, por exemplo: "Hoje um inseto morreu no meu copo de suco".

2. Altere o sentido de algumas frases, de modo que elas acabem parecendo um pouco inusitadas. Um exemplo simples: onde você escreveu "Fui passear em uma estrada cheia de hortências", escreva "Passei o dia tentando acompanhar as hortências, mas elas sempre iam para o outro lado".

3. Escute músicas de amor, de preferência as de um amor que deu certo. Não é preciso estar apaixonado: apenas cante junto e finja que está. Faça uma lista das suas preferidas e atualize quinzenalmente.

4. Faça uma lista dos melhores momentos da sua vida. Demore-se bastante em cada um, procurando identificar as sensações que eles despertam. Lembre-se de que viver o presente não tem nada a ver com não regar flores de ontem.

5. Não deixe o seu manual se viciar em um estilo. Quando achar que a ternura está virando melancolia, que as imagens vão ficando exageradamente coloridas ou que as declarações de amor começam a implicar com os defeitos do outro, tente escrever sobre alguma coisa que nunca antes havia passado pela sua cabeça.

6. Mas também não se vicie em evitar os vícios.

7. Prefira os lápis – mas nunca, em hipótese alguma tenha medo de se arrepender daquilo que escreveu. Para este caso, sugiro acrescentar ao seu manual o subtítulo: Ao contrário do que se imagina, sobreviver exige uma boa dose de fraquezas.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Claro

Coração transparente, felicidade iluminada ao som das águas – brincar como criança à beira da cascata; rolar na grama entre formigas, cócegas, risada que se solta e vai pousar num galho alto ouvir notícias sobre o azul; abrigo e segurança desse estar presente e ter visitas: planos aéreos pra daqui a dois anos, a sensação ligeira de uma encarnação anterior; diamante ao sol; brilho dos olhos; a vida se descobre alegre e leve e doce porque toda angústia, todos os medos, tudo que fere ou perde recebeu enfim de todos os tarôs, todos os búzios, todas as linhas da tua mão a mesma e única resposta: Bem mais simples.