segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ver coisas novas

Estive à tarde em conversa com Alberto Caeiro. Ele estava lá nem um pouco entediado com a Eternidade, exceto por não ter escrito, e perguntava se eu não estaria disposto a transcrever-lhe uns versos. Mas ele era muito outro de ter visto coisas novas, e de falar a mim. Pedi que ele esperasse o meu tempo – que eu vivo no tempo, ainda – e que ele ao menos assinasse os seus escritos com um novo nome, se eu acaso os aceitasse. Ele viu muita graça nessa coisa de assinar com outro nome. Mas concordou, enfim. Disse que não era o nome que o fazia ser Caeiro – “como as pedras”, acrescentou, “não deixariam de ser pedras se as chamássemos de pássaros”. E havia estranhamente algum sentido oculto em suas palavras; no seu rosto, um sorriso calmo de ter visto coisas novas e preparar a grandeza de dizê-las. Como se na Eternidade, apesar de pedras, as pedras muito à sua maneira levantassem voo.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O inevitável

– Está vendo aquela casa lá? – eu perguntei. Estávamos no alto da montanha, ele de passagem, eu em uma conturbada guerra interior. Eu mal conseguia erguer a mão para apontar; ele, por outro lado, estava cheio de energia e excitação: nem teria parado se a minha voz não estivesse tão fraca ao pedir-lhe um gole d’água. Ele se virou para olhar na direção em que apontei. Uma casinha branca, no alto de uma colina distante, expelia uma fumaça igualmente branca pela chaminé. O homem fez que sim com a cabeça e esperou. Eu continuei: – Serei muito bem recebido ali por sete pessoas que nunca antes tinham me visto. Em alguns dias, estarei sendo tratado como um membro da família; e, pouco tempo depois, é o que de fato eu vou ser. Vou me apaixonar perdidamente por Gabriela, a filha mais velha do casal, e depois de um ano e meio vamos nos mudar, como marido e mulher, para outra casa que terei construído em algum lugar aqui por perto.

O homem recebeu de volta o seu cantil com os olhos arregalados fixos em mim. Abriu a boca para falar, mas não encontrou as palavras. Franziu a testa e esperou outra vez, como se a sua pergunta já estivesse clara o suficiente para mim.

– Sim – eu disse. – Saí de casa há doze anos, exatamente como você, em busca de aventuras. Mas nem de longe vivi tudo o que eu estava pensando que ia viver...

Fiquei em silêncio. O homem olhou mais uma vez para a casa distante, e depois de volta para mim, ainda sem entender. Era óbvio que ele estava movido pelo mesmo impulso que eu tive, havia doze anos, e que simplesmente não conseguia imaginar-se chegando ao ponto em que eu estava. Preferiu não pensar no assunto, agitando a cabeça levemente e voltando sua atenção para o cantil. Fechou-o, sem pressa; guardou-o de volta na mochila. Quando começou a se afastar, sentei-me em uma pedra e olhei para lugar nenhum. Ele se deteve apenas alguns passos adiante.

– E você vai simplesmente... desistir?! – perguntou.

Eu sorri.

– Estou sentado nesta pedra há onze meses.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O acidente

Tentando ter sobrevivido ao último colapso.

Vida é um negócio tenso.

Logo terei renascido e serei muito outro. Até tem graça. Meu coração de terra fixa e ascendente em água fixa talvez até gostasse de ser sempre o mesmo, mas não deu, não foi, a caravana avança. Mas como eu tenho pena de mim mesmo aqui pequenininho, ferido, confuso, etc! Deveriam fazer uns manuais emocionais individualizados, nada de genéricos. Sim, estou envelhecendo na lista de espera. Aí vem um tsunami vez ou outra, um Katrina, um Vesúvio, uma hecatombe. E pôxa vida, Deus, eu não sou Deus nem nada. A gente fica assim no meio dos destroços, imaginando se encontrar a caixa preta serviria para alguma coisa. Por que que as almas não têm pronto-socorro? Falar. Falar. Falar ocupa os pensamentos. E a gente sente menos – quase não sente, quase não sente – até que chegue o dia em que a gente aprenda a rir de como alguém no mundo pode ser tão bobo. Mas nada disso – nada de promessas por enquanto. Às vezes é preciso uma catarse a seco. Amar por implosão. Morrer o que ainda presta. E esperar, e esperar, e esperar.

Ressurreição é coisa de domingo.

domingo, 7 de junho de 2009

Proposta de um primeiro encontro

Começaremos bem. Assim. Você confessa que é dissimulada. Cínica. E sempre se deu muito bem nas manipulações sutis. Você ganhou um ponto. Ou dois. Por ter reconhecido que eu não sou tão cego. E aí confesso eu. Que vou usar você pra alimentar minha vaidade. Testar limites. Jogar na cara da mulher a menininha acuada. E dessa vez sou eu que ganho um ponto. Ou dois. Por não te achar assim tão burra. E só depois é que começa o jogo. Um jogo limpo. Talvez não passe do primeiro tempo. Talvez eu não me importe de rachar o prêmio.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Muito mundo

À luz vadia de uma manhã de nuvens cinzas, percorro em pensamento o centro da metrópole que já chamei de casa. Num quarto distante, na província, cortinas balançando ao vento, deito-me completamente ausente: nesta manhã sou puro ontem; pura imagem projetada, dançando com as sombras sobre as pautas do caderno. Ruazinhas estreitas, céu recortado por concreto e, nas fachadas, nomes, telefones, logos: placas de escritórios que a gente nunca soube realmente pra que servem. Na mesa de um café, eu saboreio o gosto de optar pelo meu gosto em uma taça de café gelado. E de lá, sem pressa, percorro em pensamento as ruas do meu bairro, a muitas quadras de distância. Trilhos de trem, aglomerados de prédios. Nalgum lugar alguém pregou o anúncio: Vende-se este mercadinho. Parece coisa da província. Ou é. E como eu poderia não me confundir com tantas ruas, tantas letras, tantas cidades pra um só par de olhos?