sábado, 29 de agosto de 2009

Revelação

Esse tremor, a hesitação que sentimos quando desvendamos algo que talvez fosse melhor permanecer oculto. Olhamos em volta à espera da reprovação – qual outra consequência existe? – enquanto as nossas mentes já começam a encobrir o novo com a decisão: Não, eu não vi. E então saímos a pensar sobre outras coisas, desejando ardentemente acreditar ainda nelas – como se não fosse inevitável, como se já não soubéssemos bem antes que o segredo revelado alteraria para sempre o curso de nossas vidas.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Brisa

(Memórias)

O sol estava se pondo em Valfenda. Eu e meu irmão nos sentamos no terraço para conversar, entre flores, sob um céu de cores quentes: tudo estava imerso em uma paz absoluta. “O tempo para pra eu passar”, cantei de repente. E concordamos que, no fundo, Brisa era uma música triste. Mas – estranhamente emocionados – concluímos que tinha sido escrita por um anjo.

Foi uma das primeiras músicas que compusemos juntos. Nunca entendi direito aquele sonho de anos mais tarde, nem via nada de tão extraordinário assim em Brisa. De qualquer forma, era fato que tínhamos por ela um carinho especial; e entre amigos, quando estávamos em um bar ou em uma festa e não gostávamos da banda, esperávamos pelo intervalo entre uma música e outra para lançar bem alto o desafio:

– Toca Brisa!

Não tenho certeza de que a chuva dançava mesmo pelo céu na hora em que escrevemos a primeira frase. Tenho a impressão de que era apenas uma manhã cinza. Até porque, depois que nos enrolamos no meio da música, decidimos ir terminá-la ao ar livre, em um dos parques da cidade. E foi assim que o Bosque Alemão ofereceu a imagem que faltava à nossa canção sobre um lugar que desperta e ainda sonha, sem pedidos nem metades.

Um grupo de alunos de uns seis ou sete anos passeava pelo parque. E, em nossa música, aquelas crianças eram tinta escorrendo pelo chão de pés descalços, cores brincando distraídas no jardim e o medo desaparecendo devagar em um sorriso.

Então eu não entendo como Brisa pode ser no fundo uma música triste.

Mas sim, acho que entendo o anjo.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Duplo

Algo me detém antes da curva, ou de fechar a porta: são olhos meus em outro rosto, é um pouco estranho. Ela – porque é “ela”, e nada disso é extraordinário – agita uma taça de cristal com sal na borda, batom na boca, derrama um punhado de palavrazinhas e eu escuto a minha voz pensar em outra voz, em outro sexo, outra saliva. E eu me embriago de mim. Mas nela. Somos de uma mesma tempestade interna, dos mesmos barcos naufragados, da mesma superfície clara e limpa conquistada à força? Do mesmo sopro? Ficamos assim. Imóveis, contidos. Não diremos um ao outro o que se passa no mais obscuro de nós mesmos – um pouco porque não importa, um pouco porque já sabemos – e nos olhamos de longe antes da curva ou de fechar a porta e finalmente agradecemos. Agradecemos? Agradecemos. Porque estamos sim completamente sós. Mas nunca é tanto.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Errante

Duas horas para o beijo azul dessa melancolia. Os dedos estendidos, minhas mãos abertas e voltadas para uma garoa que inventei: a tarde é fria, e cinza, e há todas essas coisas que se dissolveram pelo tempo longo de não terem sido ditas. Quanto eu te amei. Quanto eu fui feliz por um dia. Se a vida, o mundo, os deuses te entregassem! – mas apenas contemplar, obra divina, mármore, Helena do meu sofrimento lento. Ou arrancar meu coração com as mãos e vê-lo consumido, exausto, negro. Duas horas para me esquecer de ti, eu que não me esqueço nunca. Guerras inúteis. Estradas de tijolos cor-de-chumbo. Duas horas. Contra uma ausência interminável.

E é à terra que reclamam. Meus pés, confundidos neste território vasto e sem vida. Como é possível?, me pergunto. Como eu suporto ser tão nítida essa tua imagem?

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Como domesticar um lobo

Aos nove anos eu já era assim calado e solitário, inventando os meus brinquedos no vazio do sótão que era meu quarto de dormir. Vivíamos na fazenda apenas eu, meus pais e dona Laura, uma senhora triste e trabalhadeira que eu nunca soube ao certo como foi parar ali. Sem amigos, sem outra companhia em casa além de livros coloridos e brinquedos inventados, frequentemente eu fugia para explorar o território interminável da fazenda; e passava as tardes em duelos mortais com os galhos baixos das árvores, descobrindo aldeias e tesouros escondidos, sentindo-me um pequeno rei selvagem como Tarzan ou Mogli ou observando longa e atentamente as águas do riacho a imaginar o que haveria de tão perigoso nele ou do outro lado para que minha mãe me proibisse de tentar atravessá-lo. E era tudo muito vivo e sólido para que eu compreendesse o peso negativo da palavra “solidão”: o mundo era eterno e renovável de dentro para fora a cada dia, e todo o necessário estava ali, no meu próprio reino mágico e real, ao alcance dos meus dedos.

Talvez por isso eu tenha me escondido em meu quarto no dia em que Júlia chegou à nossa casa. A despeito da insistência de minha mãe para que eu recebesse bem a sobrinha-neta de dona Laura que estaria “fragilizada por perder os pais”, que “viveria conosco”, e “deveria ser tratada desde seu primeiro dia ali como a irmã que a partir de então eu ia ter”. E foi preciso que meu pai me arrastasse pela orelha escada abaixo e me obrigasse a sorrir e a dizer meu nome diante daqueles olhos imensos e azuis de quem invadia o meu reino. Aqueles olhos imensos e azuis. Não me lembro de ter reparado em nada mais naquele fim de tarde. Júlia tinha a mesma idade que eu e era delicada e generosa, quase tão quieta quanto eu, um anjo, uma alma irmã de muitas outras vidas. Na manhã seguinte éramos velhos conhecidos, embora tímidos, jogando com os brinquedos um do outro exatamente como o outro – como se já soubéssemos o que fazer de tanto tê-lo visto. Júlia, minha querida irmã, minha metade eterna.

Aquela felicidade durou menos de dois anos, mas alterou para sempre o meu modo de agir à medida em que me trazia à tona, ao mundo das relações. Começou com um fato banal, em uma tarde em que brincávamos diante da casa. Nem sei explicar como uma coisa tão pequena quanto aquela pode ter feito tanta diferença. Mas foi assim: eu estava zombando dela porque seu vestido ficou sujo de terra depois que ela caiu, então ela bateu em meu braço e disse “bobo” – mas meio sorrindo, achando graça no mesmo que eu, aceitando como jogo o ato de provocar o outro. Então eu não soube o que dizer nem como reagir. Tive vontade de fugir dali, porque eu estava enfrentando qualquer coisa com que eu definitivamente não sabia lidar.

E foi assim que fomos nos aproximando cada dia mais, enquanto eu ensinava a ela a subir em árvores, enfurecer os cavalos ou procurar por diamantes na parte rasa do riacho. Júlia era de certa forma uma extensão autônoma de mim, e só depois de muito tempo foi que eu percebi que andávamos de mãos dadas de um lado para o outro – por causa do único comentário sorridente que eu me lembro de ter visto um dia dona Laura fazer. Meu reino continuava sendo meu; e embora o de Júlia pudesse ser ligeiramente diferente, não havia entre nós necessidade alguma de fusão, nem de fronteiras, nem de conquistas e transformações: as duas realidades eram simplesmente duas realidades ocupando o mesmo espaço, irradiando-se continuamente de uma para a outra, pulsando juntas, doando e recebendo sem cobranças tudo o que gerassem de melhor.

Hoje acredito que o tempo de duração da nossa história não foi mais nem menos do que o necessário para que eu aprendesse a conviver com os outros sendo lobo. Porque não era preciso alterar quem eu era, desde que eu soubesse – como eu soube – de que parte minha brotava forte e saudável a árvore do meu amor humano. Júlia morreu afogada no dia do meu aniversário de onze anos. Não me deixaram vê-la; não permitiram que eu me despedisse. Mas nem imagino por que seria necessário: levaria aquela irmã comigo ao longo de todos os meus dias, mesmo depois de ter tido outros reinos ou amores. E assim eu poderia alimentar ao menos a ilusão de que ela não morreu de fato, mas foi levada embora, para viver quem sabe com outra tia-avó, longe de mim – talvez como um castigo por ter feito amadurecer tão cedo em meu coração de menino esse fruto obscuro, açucarado e quente que até hoje poucos sabem que é possível decifrar.

domingo, 2 de agosto de 2009

Invocação

Esteja ao meu lado quando cair a noite. Quando eu me perder de tudo, e parecer silêncio o vai-e-vem dos carros na avenida, e parecer solidão o eco insistente da memória. Esteja ao meu lado, deus, cosmos, confiança. Esteja ao meu lado quando restar apenas gravidade do tempo sobre este corpo que percorre as ruas, reflexo nas vitrines, pensando tão-somente em proteger-se contra o frio do inverno. Quando o sinal abrir, e eu ficar preso do lado errado da rua, e eu afundar o queixo no casaco, as mãos nos bolsos, o coração em uma inexplicável nostalgia. Esteja ao meu lado. Luz. Beleza. Sensação da mais acolhedora eternidade.