segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Espectro

No começo era brincadeira. Perguntar em que ano estamos, em qual dimensão, a que espécie pertencemos. Ríamos, e eu guardava um orgulho infantil por me sentir diferente. Do mundo. De tudo nele que eu desprezo. Em algum momento as dúvidas deixaram de ser brincadeira. Meu espírito se desprendeu, começou a vagar e a se dissolver no infinito. Eu tenho olhos de que cor? Nos mesmos bares de sempre, nas mesas do escritório ou escovando os dentes: de repente havia uma diferença substancial entre a realidade e eu. Não era triste. Nem era bom. Era estar de volta a uma Terra ancestral, num tempo em que a atmosfera não permitia ainda a diferenciação de cor e tudo era uma grande pasta cinza. Houve esse tempo, sim. Como haverá o tempo em que o sol terá engolido o nosso mundo, um sol envelhecido e já cansado, um mundo sem mais vestígios da nossa civilização. Estas mãos, quantos dedos elas têm? Eu era feliz acreditando em coisas bobas como a felicidade. Hoje - mas hoje quando? - eu ando pelas ruas entre ruídos de corpos e de máquinas vivendo alguma coisa que eu não sei o que é, vagamente durando, musicado por paixões e pensamentos que a cada instante são outros, inutilmente sob um mesmo nome. O amor, o que ele é, que relação terá com este músculo em meu peito feito de metáfora batida? Projetos. Memórias. Tudo se desfez num sopro. E tudo existe ao mesmo tempo, agora.

domingo, 7 de novembro de 2010

Entender estrelas

Eu queria dizer "nunca mais eu quero ver você", ou qualquer coisa assim melodramática, mas ela estava ali me olhando com aquele sorriso de dar raiva, o cabelo solto, o pijama azul meio masculino e o cheiro leve de um sabonete de amêndoas. Era quase meia-noite e parecia até que ela estava feliz com a minha visita, então eu pedi licença para acender um incenso de... hmm... laranjeira?... e fui me sentar na poltrona que ficava entre o aquário e o abajur de tela verde - as únicas fontes de luz em toda a sala. Você se lembra da primeira vez que eu fui ao Sarau dos Sete Ventos, será que algum dia eu vou ser perdoado por ter escolhido o soneto mais óbvio do Olavo Bilac? "Eu nunca teria voltado se não fosse por você", eu quis acrescentar, ou qualquer coisa assim que valesse finalmente como confissão, mas deixei que ela risse e tentasse me acalmar dizendo que teria sido muito pior se eu declamasse o Soneto de Fidelidade. A culpa era daquele nome ingênuo - "Sarau dos Sete Ventos" - que me fez pensar que o melhor que eu ouviria ali seria o-poema-que-escrevi-ontem-à-noite-sobre-a-minha-solidão-neste-mundo-insensível. Eu a desejei assim que ela subiu ao palco para um poema de Safo - todos ali já sabiam que ela gostava de garotas, mas eu não, e ela era uma garota, e afinal eu também gostava de garotas. Ficamos amigos, frequentamos juntos todos os cinemas e museus e teatros e clubes de strip-tease da cidade. Você se lembra daquela exposição de arte contemporânea, daquela sala branca em que eles projetavam sobre cada pessoa a imagem de um quadro famoso; você se lembra de como você riu quando percebeu que você era O Nascimento de Vênus e eu era Saturno Devorando um Filho?


Ouvia-se apenas o murmúrio da água e o zumbido do motor do aquário. Ela era perfeita à meia-luz, ela era perfeita em qualquer circunstância. Eu me sentia um moleque de onze anos que esperava um beijo no cinema e não sabia como contornar o fato dela manter a mão longe do braço da poltrona. "Eu nunca vou poder dizer", eu pensava, "seria inútil"... O que eu estava fazendo ali àquela hora?!

- Aceita um café? - ela perguntou de repente.

Se ela soubesse o ódio que eu sinto...

- Forte. E não coloque açúcar.