terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Dezembro

As ruas recebem os meus passos lentos e pesados; ofuscam meu olhar as luzes de Natal – e mesmo que algum rosto fosse conhecido, hoje eu não saberia dizer nada a meu respeito sem usar um piano. A noite é quente, a vida é agora e eu me sinto um personagem sem nenhum encanto dentro do meu terno, nesse meu ar taciturno, procurando nas vitrines por um objeto qualquer que possa confessar o meu amor em meu lugar, de preferência sem que eu precise levá-lo. Às vezes eu me sinto um órfão. Às vezes eu sei que eu nasci no século errado. Um poço de incapacidades para coisas banais, uma lente escura sobre um mundo incompreensível e uma paixão inútil por rosas, vestidos rendados, bonecas de porcelana ou anjinhos de gesso em que você veria a minha alma sem nunca se sentir amada. São sempre tristes nossos momentos de entrega. Como os de um amor impossível; como os de um amor que estivesse sempre às vésperas de ser passado. A minha solidão é interminável. Prisão de um corpo e de um tempo – a escuridão da noite maltratada por enfeites burros de Natal, a extinção em massa dos engraxates, dezenas de pessoas na euforia de comprar presentes ao mesmo tempo em que lamentam as férias das crianças, as minhas mãos que se levantam no ar e procuram dissolver a realidade pelos sons imaginários de um piano invisível, eu sem você nas ruas da cidade, você e a cidade sem saber por onde eu ando, por que eu ainda ando – quais são as chances de um raio divino atravessar o universo e se lembrar de transformar nosso planeta em um fluir constante da mais pura música?

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Fortaleza em meio à selva

(Memórias)

Subir no muro do parquinho em busca de araçás. No fim da rua, em um condomínio fechado. Casinhas brancas de dois andares: a nossa era a primeira à esquerda de quem entrava. Encontrar um passarinho morto sob a escadaria. Não achar nenhuma graça em aulas de judô – aos dezessete, voltei àquela casa que era o meu jardim da infância e me pareceu que haviam reduzido muito o espaço. Ganhar uma bicicleta no palito do sorvete. Um fim de tarde, atravessando o viaduto ao lado da rodoviária, ouvir de meu pai uma história qualquer sobre um acidente de carro. Luzes de freio. Luzes. Por que eu me lembro dessas luzes com tamanha nitidez?

Meu pai dava plantões no Hospital Psiquiátrico. Eu não tinha mais que cinco anos: penumbra da memória, noites de poeira nos cenários só meus da capital paranaense. Um quarto pequeno, lâmpadas não muito fortes. Eu fui com ele, talvez mais de uma vez, passar a noite naquela casa de pessoas doentes – não loucos, eu não sabia ainda o que era isso; e meu pai era muito generoso por cuidar tão bem daquelas gentes. E ainda assim encontrar um tempo para estar comigo naquele quarto, jogando futebol de botão, assistindo a um Globo Repórter sobre os meios de sobreviver na selva. Um prato de lesmas, é tudo de que me lembro naquele programa. Por ser inédito, e não desagradável: um mundo novo, apenas, de uma estranheza colorida e fascinante.

Mas acho que dormi bem antes do final da reportagem.

domingo, 22 de novembro de 2009

A dor que deveras sente

Como se não fosse sempre sobre uma realidade pessoal, eu escrevia um conto utilizando a estrutura descrita pelo professor e baseado nas ideias de Baudrillard, com delicadas doses de naturalismo e citações de Catulo. Como se não fosse sempre para a menina sentada à minha frente; mas eu gostava mesmo de ouvir aquelas teorias sobre o foco narrativo, e parecia-me que faltavam apenas algumas aulas até que eu me tornasse um novo Proust ou Dostoiévski. O professor interrompeu a explicação para perguntar se alguém sentia cheiro de queimado. Mas não lhe dei atenção, porque eu estava distraído com as pontas verdes do cabelo de Yanna Karolina, sentada ao meu lado e, por sua vez, perdida na lembrança de uma tarde de verão em Londres no ano de mil novecentos e oitenta e sete. Acho que a Universidade pegou fogo. E eu não consegui terminar o meu conto – o que afinal foi o menor dos males. Eu lamentava muito mais o fato de que, dois andares abaixo, outro escritor acima da média estaria se sentindo um Saramago injustiçado enquanto suas obras completas e inéditas ardiam no fogo eterno das universidades federais.

Aí resolvi escrever esta historinha, só porque já estávamos mortos, mesmo, e eu queria dizer a ele que no fundo eu continuava achando tudo muito divertido. Ou só morreram os "eus-líricos" naquele incêndio? Ou a poesia não mereceria nunca revelar na prática a sua alma de combustão espontânea?

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O caminho

Eu ia recolhendo, aqui e ali, palavras e gestos que me respondessem a pergunta que eu calava. E pensava que, por precaução, seria preciso ainda calcular a intensidade e a pureza de sua entrega, como se só eu soubesse; como se o amor não fosse amor se diferente do que eu dava, e a minha medida fosse a única medida, e os meus gestos fossem os mais certos. Mas no cenário que eu criei, era impossível que você não reparasse: eu nunca tive muito mais que medo e solidão para lhe oferecer em troca. Esse era o meu rosto, por trás do último disfarce. O medo, e o meu vazio de não ter sido nunca verdadeiramente eu. Só um autoabandono. Quando você surgiu, há muito tempo, parecia afinal que alguma coisa em minha vida se justificava. Que se encaixavam as peças, e que o mundo voltava a girar com uma alegria suave, como lhe era próprio, como deveria ter sido desde o início. Por causa dos seus gestos e palavras sempre doces – que eu passei a perseguir como um desesperado – eu soube enfim que algum caminho era possível para chegar à paz interior, e que talvez, no caminho, o que eu chamava de vazio mostrasse a sua verdadeira natureza de uma luz eterna, acolhedora, viva – apenas invisível para os meus olhos de antes. E é assim mesmo. Mas foi um salto no escuro; um salto que eu me demorei demais para dar. Eu tinha medo da mais vaga possibilidade de você não me querer como eu era. E eu aprendi a roubar o seu carinho. Mas só mostrei de mim a parte que jamais o mereceu – até que você notasse, e me deixasse finalmente entregue ao "eu" que eu tanto demorei para admitir a mim mesmo.

sábado, 31 de outubro de 2009

Terras da noite. Constelação dispersa, mar revolto.

Eu estava brigando com as seguintes palavras: foto, beijo, boca, joelho, dança, roupa, brinco, bola de chiclete.

E eu tinha um filho. Ele bagunçou um pouco as coisas, me fez chorar na primeira vez em que o deixei na escola. Foi mesmo assim. É bem verdade que eu morro de inveja das crianças, mas não é só delas, não. É de tudo aquilo que eu não posso ser. De tudo aquilo que eu só posso contemplar enquanto os outros são.

Mas assombrado pela teia de uns cabelos negros... sem conseguir dizer que ainda estou em mim. Até que o tempo passe e eu não precise fazer nada. Até que eu aprenda a deixar cair o meu castelo. Você brincou? Orou? Caiu? Você chegou em casa com o joelho sujo. Você chegou em casa com uma folha no cabelo.

Cabelos negros... é do ar da noite, não? Ao vento, um cavalo preto, em um lugar onde me vi perdido e de onde você me tirou. No ano de mil seiscentos e cinquenta e dois: olhos azuis, bosque, gravetos, e você me lembrou o meu filho e eu te levei para casa em minha carruagem suja. O tempo tem poeira, não? É um candelabro debaixo de um lençol, é um jogo de porcelana que uma avó deixou. Depois eu quase fui feliz em outra foto: Bosque do Papa, mil novecentos e oitenta e seis. Abraço. Família. Bolas de chiclete e futebol.

Onde eu parei?

Me lembro de você sentada no canto de um bar, olhando para mim. E os teus olhos brilhavam, e o teu cabelo era comprido e muito preto. Você era bonita. E a luz era azulada, e o bar era de blues.

Só muito mais tarde o azul de espera da televisão, e a voz arrastada do Tim Maia cantando "eu amo você... menina..."

Mas era mais verdade o João e Maria do Francisco.

Lembranças de uma flauta flutuante, e de você anotando em meu caderno este diálogo que é bom de ouvir:

– Faz um desenho?
– De quê?
– De uma laranja.
– Laranja?!
– ...
– ...
– Não, pode ser azul.
– Rá!
– Foi boa, né?
– Foi.
(...)

Eu vou gravar a fogo o teu nome em meu ouro.

Mas hoje... não sei. Havia uma pontada de tristeza em tua voz?

Envelhecer é ver as coisas se alargarem por dentro, e nada mais tem um só rosto, e tudo é sinuoso e sem fim, e eu já não sei se faz sentido eu fazer uma poesia tão limpa.

Seremos felizes?

Somos.

Eu vou transpor esse abismo de intrigas e palavras entre nós. Então quem sabe alguma coisa ande. Então quem sabe vibre em liberdade a perfeição do teu nome, do amor e da pele, pássaro e maçã.

São peças que se encaixam facilmente. E embora o seu desenho seja turvo, as minhas mãos lhe darão cores e luzes, e sopros de vida e de verdade.

Apenas... esteja lá.

Para que afinal saibamos se naufragar é preciso.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Nascer

As ideias sobre os objetos, os substantivos concretos estavam começando a me engolir. O arame farpado, os cadafalsos, os vidros de perfume, os formulários, os óculos para ver em 3D. Nada disso era matéria, mas puro pensamento sobre ela – palavras, estruturas abstratas. Diante dos meus olhos, só uma neblina muito densa. Haveria uma maneira – sim, era preciso que houvesse – haveria uma forma de entender a neblina apenas pelo tato, sem nem uma letra, nada, somente a sensação absoluta? Haveria um jeito de estar no mundo, e perceber as coisas, e ter algum conhecimento construído sem os símbolos – não mais que o tempo-agora do meu corpo? Ser algo assim como uma árvore móvel? Como um cordeiro? Abandonar-me sem receio à realidade interminavelmente silenciosa do Universo?

domingo, 4 de outubro de 2009

Festejo

Um dia você está lá, quieto no seu canto, pensando na chuva ou fazendo uma poesia parnasiana, e sem que você perceba o tempo vai tramando coisas reais e grandiosas para a sua vida. Você reúne bons amigos, desses que eventualmente aparecem, e numa noite qualquer de conversa furada vocês imaginam, sei lá, um festival de teatro que reúna grupos de toda a região e incentive a produção nas escolas, com várias oficinas simultâneas e espaços para discussões e trocas de experiências, palestras, grupos convidados, estéticas variadas, artistas amadores e profissionais num mesmo espaço e respirando teatro ao longo de toda uma semana.

Aí vem o silêncio. Você e seus amigos se entreolham, respiram fundo. "Isso não ia ser fácil", alguém diz. Novo silêncio. Novos olhares. Até que alguém bate na mesa e fala decidido: "Então é melhor a gente começar agora".

Acho que foi a Clarice Lispector que eu li uma vez dizendo que quando você quer chegar a um ponto é preciso trilhar caminhos muito diversos, inclusive no sentido oposto ao do ponto em que você quer chegar. E quando você luta para realizar um sonho, é impossível se manter à distância de tudo o que a realidade traz em si de pesadelo. A burocracia burra e a falta de dinheiro para um evento dessa natureza são quase irrelevantes, para mim, diante de questões humanas como ceticismo e arrogância, má vontade, oportunismo, estupidez, mesquinharia, etc, etc, etc. É como atravessar o inferno por uma fé meio vaga de que o paraíso ainda esteja à espera. É quase ser engolido pela máquina enquanto você se esquece do que queria quando começou a construí-la.

Mas quando tudo acontece, afinal, você descobre um pouco espantado que a realidade já não é mais tão diferente do sonho que você sonhou um dia...

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Um lugar onde ficar para sempre

Senti pequenas pontadas em toda a mão quando toquei a laranja. Nas ruínas de São João Batista, um pouco antes, eu havia provado o fruto de um cacto chamado tuna, comestível segundo a plaquinha ao lado – mas a plaquinha não dizia nada sobre não usar as mãos para tirar os espinhos. Dessa vez, pensei, estaria seguro; mas quando tirei a laranja do galho, ouvi uma voz vinda de não sei onde:

– Quem disse que você podia?

Uns doze passos adiante, um pouco escondido pelas laranjeiras, um índio adolescente, mais ou menos de minha idade, olhava para mim com a cabeça erguida em tom de desafio.

– Foi um espírito da terra – eu disse devagar. – Você não ouviu?

O índio deu uma sonora gargalhada e caminhou em minha direção. Estávamos no sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, o mais bem conservado da região das Missões, numa manhã calma e ensolarada de sábado. O menino se chamava André e estava acompanhado por sua irmã mais nova, Rute, que de início preferiu ficar à distância me observando. Contei a eles que já tinha estado ali na tarde anterior, mas que naquela manhã, com tempo livre e o pouco de dinheiro que meus pais me deram, tinha resolvido voltar e aproveitar a boa energia do sítio para escrever poemas. E ficamos assim durante algumas horas, André contando histórias do lugar e de Sepé Tiaraju, eu falando de São Paulo e das comodidades dos shoppings, Rute folheando em silêncio o meu caderno de poemas.

– Você precisa ver este lugar à noite – disse André a certa altura. Rute ergueu os olhos para o céu e, com uma voz muito baixa, acrescentou:

– Hoje à noite vai estar bonito.

André explicou que eles sabiam de um jeito de entrar sem serem vistos, e sugeriu que eu fosse me encontrar com eles perto dali um pouco antes da meia-noite. Aceitei de imediato. Sabia que todos estariam dormindo, porque viajaríamos bem cedo na manhã seguinte, e assim eu não teria dificuldade em despistar meus pais. Quando me despedi, confirmando que os encontraria no local indicado, mal reparei nos olhos tristes de Rute ao me beijar no rosto.

Passei a tarde com meus pais em Santo Ângelo, sem mais ver muita graça no ambiente urbano e desejando ardentemente que a noite chegasse logo. Sentado em um banco da praça, enquanto meus pais compravam ponchos que nunca teríamos coragem de usar em São Paulo, escrevi um longo poema sobre um lugar iluminado de sonho e memória, um lugar onde ficar para sempre: o pequeno paraíso em que povos de culturas diferentes ensaiaram, havia tanto tempo, uma convivência harmoniosa que nunca tinha chegado a se concretizar de fato.

À noite, na hora marcada, esperei por André e Rute com aquela sensação irrecuperável de aventura adolescente. Fazia frio, e eu estava cansado de um dia muito longo, mas tinha certeza de que poderia passar a noite ali sem o menor vestígio de sono. Um pouco depois da meia-noite, com um poncho cor-de-rosa combinando com o gorro, Rute dobrou a esquina e caminhou sozinha em minha direção, sem olhar para mim até que estivesse a menos de três passos, quando informou, com a mesma voz baixa que eu ouvira naquela manhã:

– Meu irmão não vem.

Por um segundo, achei que a aventura da noite estava cancelada. Mas depois, sem dizer mais nada, com uma segurança que até então eu nem imaginava que veria nela, Rute me pegou pela mão e me conduziu direto para o interior do sítio. Levou-me até um ponto relativamente protegido pelas árvores onde, segundo ela, seria impossível sermos surpreendidos pelo vigia, e sugeriu que nos deitássemos usando nossos ponchos como cobertores. Eu era guiado sem resistência, um pouco surpreso, mas ao mesmo tempo estranhamente à vontade. Quando rompi o silêncio e, já deitado, comecei a conversar sobre as constelações que eu conhecia pelo nome, apesar de nunca tê-las visto no céu de São Paulo, parecia que estivera ali desde sempre, ao lado de Rute, sob aquele céu absurdamente amplo e branco de estrelas.

– E não é mesmo um lugar onde ficar para sempre? – perguntou Rute.

Olhei para ela um pouco confuso. Ela sabia do que estava falando, embora o poema não estivesse ainda em meu caderno quando ela o pegou de manhã. Olhava para mim com os mesmos olhos tristes de quando nos despedimos, mas sem hesitar, sem desviar-se dos meus nem por um segundo. E então, movido por uma força que não vinha de mim, mas dos séculos, passei o braço sobre sua cintura e a puxei para mais perto.

Foi minha primeira noite de amor, e estou certo de que foi também a dela. Nervosos e sem jeito, ríamos como crianças; e ela reclamava que as minha mãos estavam frias, e eu reclamava que as minhas mãos doíam com os espinhos da tuna – mas nos beijávamos continuamente, e ríamos de novo, e renovávamos o amor e a eternidade sob o calor dos nossos ponchos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Para dizer coisas azuis

Primeiro: sopre uma palavra qualquer dentro de uma bolinha de sabão. Não pronuncie em voz alta. Não escolha. Só pense na palavra e sopre.

Segundo: só chore se for por acaso. Não invoque uma tristeza que já está suficientemente presente nos momentos bons. Prefira acreditar que hoje é mais ou menos o dia mais feliz de sua vida.

Terceiro: tenha uns dois ou três amigos por perto, para o caso de acabar chorando.

Quarto: perceba que você ainda é criança em algum lugar. Olhe o mundo desse jeito – sendo criança – mas não diga nada a ninguém. Deixe o tempo formular combinações melhores entre ontem e hoje.

Quinto: ame como um louco. Morra de amor, grite, esperneie. Depois espere vir a noite e a chuva e saia para dançar sozinho, sem nenhuma pressa.

sábado, 29 de agosto de 2009

Revelação

Esse tremor, a hesitação que sentimos quando desvendamos algo que talvez fosse melhor permanecer oculto. Olhamos em volta à espera da reprovação – qual outra consequência existe? – enquanto as nossas mentes já começam a encobrir o novo com a decisão: Não, eu não vi. E então saímos a pensar sobre outras coisas, desejando ardentemente acreditar ainda nelas – como se não fosse inevitável, como se já não soubéssemos bem antes que o segredo revelado alteraria para sempre o curso de nossas vidas.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Brisa

(Memórias)

O sol estava se pondo em Valfenda. Eu e meu irmão nos sentamos no terraço para conversar, entre flores, sob um céu de cores quentes: tudo estava imerso em uma paz absoluta. “O tempo para pra eu passar”, cantei de repente. E concordamos que, no fundo, Brisa era uma música triste. Mas – estranhamente emocionados – concluímos que tinha sido escrita por um anjo.

Foi uma das primeiras músicas que compusemos juntos. Nunca entendi direito aquele sonho de anos mais tarde, nem via nada de tão extraordinário assim em Brisa. De qualquer forma, era fato que tínhamos por ela um carinho especial; e entre amigos, quando estávamos em um bar ou em uma festa e não gostávamos da banda, esperávamos pelo intervalo entre uma música e outra para lançar bem alto o desafio:

– Toca Brisa!

Não tenho certeza de que a chuva dançava mesmo pelo céu na hora em que escrevemos a primeira frase. Tenho a impressão de que era apenas uma manhã cinza. Até porque, depois que nos enrolamos no meio da música, decidimos ir terminá-la ao ar livre, em um dos parques da cidade. E foi assim que o Bosque Alemão ofereceu a imagem que faltava à nossa canção sobre um lugar que desperta e ainda sonha, sem pedidos nem metades.

Um grupo de alunos de uns seis ou sete anos passeava pelo parque. E, em nossa música, aquelas crianças eram tinta escorrendo pelo chão de pés descalços, cores brincando distraídas no jardim e o medo desaparecendo devagar em um sorriso.

Então eu não entendo como Brisa pode ser no fundo uma música triste.

Mas sim, acho que entendo o anjo.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Duplo

Algo me detém antes da curva, ou de fechar a porta: são olhos meus em outro rosto, é um pouco estranho. Ela – porque é “ela”, e nada disso é extraordinário – agita uma taça de cristal com sal na borda, batom na boca, derrama um punhado de palavrazinhas e eu escuto a minha voz pensar em outra voz, em outro sexo, outra saliva. E eu me embriago de mim. Mas nela. Somos de uma mesma tempestade interna, dos mesmos barcos naufragados, da mesma superfície clara e limpa conquistada à força? Do mesmo sopro? Ficamos assim. Imóveis, contidos. Não diremos um ao outro o que se passa no mais obscuro de nós mesmos – um pouco porque não importa, um pouco porque já sabemos – e nos olhamos de longe antes da curva ou de fechar a porta e finalmente agradecemos. Agradecemos? Agradecemos. Porque estamos sim completamente sós. Mas nunca é tanto.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Errante

Duas horas para o beijo azul dessa melancolia. Os dedos estendidos, minhas mãos abertas e voltadas para uma garoa que inventei: a tarde é fria, e cinza, e há todas essas coisas que se dissolveram pelo tempo longo de não terem sido ditas. Quanto eu te amei. Quanto eu fui feliz por um dia. Se a vida, o mundo, os deuses te entregassem! – mas apenas contemplar, obra divina, mármore, Helena do meu sofrimento lento. Ou arrancar meu coração com as mãos e vê-lo consumido, exausto, negro. Duas horas para me esquecer de ti, eu que não me esqueço nunca. Guerras inúteis. Estradas de tijolos cor-de-chumbo. Duas horas. Contra uma ausência interminável.

E é à terra que reclamam. Meus pés, confundidos neste território vasto e sem vida. Como é possível?, me pergunto. Como eu suporto ser tão nítida essa tua imagem?

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Como domesticar um lobo

Aos nove anos eu já era assim calado e solitário, inventando os meus brinquedos no vazio do sótão que era meu quarto de dormir. Vivíamos na fazenda apenas eu, meus pais e dona Laura, uma senhora triste e trabalhadeira que eu nunca soube ao certo como foi parar ali. Sem amigos, sem outra companhia em casa além de livros coloridos e brinquedos inventados, frequentemente eu fugia para explorar o território interminável da fazenda; e passava as tardes em duelos mortais com os galhos baixos das árvores, descobrindo aldeias e tesouros escondidos, sentindo-me um pequeno rei selvagem como Tarzan ou Mogli ou observando longa e atentamente as águas do riacho a imaginar o que haveria de tão perigoso nele ou do outro lado para que minha mãe me proibisse de tentar atravessá-lo. E era tudo muito vivo e sólido para que eu compreendesse o peso negativo da palavra “solidão”: o mundo era eterno e renovável de dentro para fora a cada dia, e todo o necessário estava ali, no meu próprio reino mágico e real, ao alcance dos meus dedos.

Talvez por isso eu tenha me escondido em meu quarto no dia em que Júlia chegou à nossa casa. A despeito da insistência de minha mãe para que eu recebesse bem a sobrinha-neta de dona Laura que estaria “fragilizada por perder os pais”, que “viveria conosco”, e “deveria ser tratada desde seu primeiro dia ali como a irmã que a partir de então eu ia ter”. E foi preciso que meu pai me arrastasse pela orelha escada abaixo e me obrigasse a sorrir e a dizer meu nome diante daqueles olhos imensos e azuis de quem invadia o meu reino. Aqueles olhos imensos e azuis. Não me lembro de ter reparado em nada mais naquele fim de tarde. Júlia tinha a mesma idade que eu e era delicada e generosa, quase tão quieta quanto eu, um anjo, uma alma irmã de muitas outras vidas. Na manhã seguinte éramos velhos conhecidos, embora tímidos, jogando com os brinquedos um do outro exatamente como o outro – como se já soubéssemos o que fazer de tanto tê-lo visto. Júlia, minha querida irmã, minha metade eterna.

Aquela felicidade durou menos de dois anos, mas alterou para sempre o meu modo de agir à medida em que me trazia à tona, ao mundo das relações. Começou com um fato banal, em uma tarde em que brincávamos diante da casa. Nem sei explicar como uma coisa tão pequena quanto aquela pode ter feito tanta diferença. Mas foi assim: eu estava zombando dela porque seu vestido ficou sujo de terra depois que ela caiu, então ela bateu em meu braço e disse “bobo” – mas meio sorrindo, achando graça no mesmo que eu, aceitando como jogo o ato de provocar o outro. Então eu não soube o que dizer nem como reagir. Tive vontade de fugir dali, porque eu estava enfrentando qualquer coisa com que eu definitivamente não sabia lidar.

E foi assim que fomos nos aproximando cada dia mais, enquanto eu ensinava a ela a subir em árvores, enfurecer os cavalos ou procurar por diamantes na parte rasa do riacho. Júlia era de certa forma uma extensão autônoma de mim, e só depois de muito tempo foi que eu percebi que andávamos de mãos dadas de um lado para o outro – por causa do único comentário sorridente que eu me lembro de ter visto um dia dona Laura fazer. Meu reino continuava sendo meu; e embora o de Júlia pudesse ser ligeiramente diferente, não havia entre nós necessidade alguma de fusão, nem de fronteiras, nem de conquistas e transformações: as duas realidades eram simplesmente duas realidades ocupando o mesmo espaço, irradiando-se continuamente de uma para a outra, pulsando juntas, doando e recebendo sem cobranças tudo o que gerassem de melhor.

Hoje acredito que o tempo de duração da nossa história não foi mais nem menos do que o necessário para que eu aprendesse a conviver com os outros sendo lobo. Porque não era preciso alterar quem eu era, desde que eu soubesse – como eu soube – de que parte minha brotava forte e saudável a árvore do meu amor humano. Júlia morreu afogada no dia do meu aniversário de onze anos. Não me deixaram vê-la; não permitiram que eu me despedisse. Mas nem imagino por que seria necessário: levaria aquela irmã comigo ao longo de todos os meus dias, mesmo depois de ter tido outros reinos ou amores. E assim eu poderia alimentar ao menos a ilusão de que ela não morreu de fato, mas foi levada embora, para viver quem sabe com outra tia-avó, longe de mim – talvez como um castigo por ter feito amadurecer tão cedo em meu coração de menino esse fruto obscuro, açucarado e quente que até hoje poucos sabem que é possível decifrar.

domingo, 2 de agosto de 2009

Invocação

Esteja ao meu lado quando cair a noite. Quando eu me perder de tudo, e parecer silêncio o vai-e-vem dos carros na avenida, e parecer solidão o eco insistente da memória. Esteja ao meu lado, deus, cosmos, confiança. Esteja ao meu lado quando restar apenas gravidade do tempo sobre este corpo que percorre as ruas, reflexo nas vitrines, pensando tão-somente em proteger-se contra o frio do inverno. Quando o sinal abrir, e eu ficar preso do lado errado da rua, e eu afundar o queixo no casaco, as mãos nos bolsos, o coração em uma inexplicável nostalgia. Esteja ao meu lado. Luz. Beleza. Sensação da mais acolhedora eternidade.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Das pequenas mudanças

Não deixe que te enganem, meu bebê: aqui não somos livres para acreditar em qualquer coisa. Dizer o contrário é só um recurso básico da hipnose. Não vá espalhando por aí que nosso amor é eterno e puro, que vivemos de brisa e de bondade ou que estamos semeando um mundo para a oitava geração depois da nossa: não se deve perturbar assim o sono de tanta gente. Qualquer verdade, bebê, em tempos tão confusos como os nossos, só deve ser passada adiante no mercado negro, dentro dos queijos ou dos tubos de pasta de dente. Até que um dia, às sete da manhã, depois de ver a própria cara sem brilho e amassada no espelho, um joão-ninguém vai reparar no despertar dos filhos e exclamar: "Não é que é mesmo!?"... e nossa última revolução será feita de pequenas implosões, não do contrário. Porque o mundo, bebê, o mundo real e esquecido é feito desses joão-ninguéns – de sua ternura contida, da esperança guardada, do encantamento abafado diante da beleza que persiste. Mas também não tenha pressa, meu bebê: nenhum trabalho importante é para ontem. Temos ainda muito tempo. Descanse em minha casa por enquanto, beba um chá, aceite um pedacinho deste queijo. Mastigue devagar e com prazer. Antes, e acima de tudo, não deixe que te vendam o seu medo – crescer demora, meu bebê, e o mundo desabar seria só o começo.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Não foi

Mas se anunciou com todas as letras em neon: felicidade, ou qualquer coisa assim – e se parecia mesmo à estrela cadente que uma vez atravessou o meu Natal, há muito tempo, quando eu apenas conhecia o mundo. Delicadamente azul; ligeira e de um fascínio absoluto. Fiz um pedido. Nada atendeu. Faltou o chão na hora do passo, a mão, o bolso, a chave de uma porta súbita. – Este menino não se acostumou ainda, vejam só, a ter o que era muito mais do que esperança, a ter certeza, a ser guiado por essa certeza luminosa e de repente estar em queda livre, só, no mais absurdo escuro, confuso, tonto, sem saber – que foi que aconteceu, meu Deus?! Ah, mas este menino que não cresce nunca... Eu tinha era vontade de escrever e de chorar, e de escrever chorando, e de chorar em cada palavra que escrevia; queria morrer, queria não ser, queria passar. Nada passou. A gente se acostuma a não ter sido. Sorri. E o gosto do sorriso é quase bom.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Teus olhos de longe

Não sei mais onde é a paisagem.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Definição

Menos que nada é quando o nada exagera. É um sobrepeso de nada, um nada que não se pode carregar sozinho. É quando o nada extrapola os limites do que é nada e ocupa espaços do que deveria ser alguma coisa, ou simplesmente fica ali impedindo que outra coisa seja mais que nada no lugar onde ele está. Menos que nada é um buraco negro no vazio do peito. É um aspirador ligado no meio do vácuo. É um nada consumindo o absolutamente nada.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Além das cordilheiras

Valquíria estava parada à porta com lágrimas nos olhos. Eu contemplava pela última vez a vasta planície de vegetação dourada que era preciso abandonar – o meu lugar sagrado, meu lar, minha colheita de sonhos. Sete pares de cavalos pastavam perto da pequena casa de madeira, exceto por Netuno, meu companheiro mais leal, que se mantinha imóvel ao meu lado como já soubesse que eu não estaria ali por muito tempo. Corri meus dedos por seu pelo branco e luminoso; um vento leve, ao mesmo tempo, agitou as folhas de eucaliptos que margeavam a estradinha de terra. Era a última chamada à minha partida. Valquíria desceu correndo os degraus da varanda para um novo abraço, enquanto Netuno disparava como um raio rumo às cordilheiras distantes. Valquíria tomou meu rosto entre as mãos: eu sorria, mas nada era capaz de desmentir o coração doído. Beijei-a. Meus braços envolveram sua cintura pela última vez.

– Me espera? – ela perguntou sem voz.

– Nem sei partir – eu disse.

Beijamo-nos. Os lábios de Valquíria tinham gosto de pêssego, de lágrimas, de uma união indissolúvel.

Quando eu viesse ao mundo, já nem me lembraria mais daquele gosto. Mas seria sempre alguma coisa assim como um vazio constante no meio da alma.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Entre lírios

Não gosto mais do que você dessa distância entre nós dois, Luana. Tenho certeza de que não foi isso que eu disse na outra carta. Os dias são serenos, sim, depois de tanto tempo longe; consigo amar de novo, rir de coisas bobas, chorar com um filme na TV. E ontem fiz um novo amigo. Um menino de uns dez anos que mora na casa ao lado. Ele me ajudou a carregar umas caixas para cima, depois ficou comigo conversando um pouco: ele gosta de batata frita, de chocolate branco e de Harry Potter; disse que passa muito tempo sozinho em casa, que quase não há meninos na vizinhança e que por isso ele vai voltar um dia desses com um jogo qualquer de tabuleiro. Gostaria que você estivesse aqui, Luana. Penso nisso todos os dias. A toda hora. Em cada letra. Na segunda-feira fui sozinho até o desfiladeiro, deviam ser umas duas da madrugada. Fiquei deitado vendo estrelas. Foi bonito. Fazia muito tempo que eu não via o céu assim tão limpo. Então eu acho que peguei no sono; sonhei com chuvas de verão, um grupo de alunos muito concentrados e o galope distante de um cavalo branco. Sei que uma hora falei “eu te amo” – você me ouvia?... O meu trabalho continua o mesmo. As mesmas caras, a má vontade de sempre, e papéis, e tinta, e nada. Mas quase já tenho dinheiro para comprar o meu piano. E sim, faço poemas. Não sei, Luana, por que foi preciso que você quase me odiasse. Que eu viesse embora; que não fosse mais do que memória a vida iluminada e sólida que tivemos no vale de Campomanso, entre lírios, repetindo aquelas promessas para tanto tempo. Mas vou voltar, um dia. Não faz sentido que eu não volte. E eu sei – por mais que você insista em me dizer que a vida segue em frente, que é até bom que eu possa te esquecer aos poucos, que não somos um do outro, que não foi nada mais que um sonho muito breve – eu sei, de toda a minha alma eu sei, ficaremos bem, e ficaremos juntos. Porque eu te amo desde sempre. Porque o teu nome tem gosto de pêssego. E porque mesmo aqui, tão longe, eu sinto a tua presença real e de repente uma certeza antiga de que nada mais me falta.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ver coisas novas

Estive à tarde em conversa com Alberto Caeiro. Ele estava lá nem um pouco entediado com a Eternidade, exceto por não ter escrito, e perguntava se eu não estaria disposto a transcrever-lhe uns versos. Mas ele era muito outro de ter visto coisas novas, e de falar a mim. Pedi que ele esperasse o meu tempo – que eu vivo no tempo, ainda – e que ele ao menos assinasse os seus escritos com um novo nome, se eu acaso os aceitasse. Ele viu muita graça nessa coisa de assinar com outro nome. Mas concordou, enfim. Disse que não era o nome que o fazia ser Caeiro – “como as pedras”, acrescentou, “não deixariam de ser pedras se as chamássemos de pássaros”. E havia estranhamente algum sentido oculto em suas palavras; no seu rosto, um sorriso calmo de ter visto coisas novas e preparar a grandeza de dizê-las. Como se na Eternidade, apesar de pedras, as pedras muito à sua maneira levantassem voo.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O inevitável

– Está vendo aquela casa lá? – eu perguntei. Estávamos no alto da montanha, ele de passagem, eu em uma conturbada guerra interior. Eu mal conseguia erguer a mão para apontar; ele, por outro lado, estava cheio de energia e excitação: nem teria parado se a minha voz não estivesse tão fraca ao pedir-lhe um gole d’água. Ele se virou para olhar na direção em que apontei. Uma casinha branca, no alto de uma colina distante, expelia uma fumaça igualmente branca pela chaminé. O homem fez que sim com a cabeça e esperou. Eu continuei: – Serei muito bem recebido ali por sete pessoas que nunca antes tinham me visto. Em alguns dias, estarei sendo tratado como um membro da família; e, pouco tempo depois, é o que de fato eu vou ser. Vou me apaixonar perdidamente por Gabriela, a filha mais velha do casal, e depois de um ano e meio vamos nos mudar, como marido e mulher, para outra casa que terei construído em algum lugar aqui por perto.

O homem recebeu de volta o seu cantil com os olhos arregalados fixos em mim. Abriu a boca para falar, mas não encontrou as palavras. Franziu a testa e esperou outra vez, como se a sua pergunta já estivesse clara o suficiente para mim.

– Sim – eu disse. – Saí de casa há doze anos, exatamente como você, em busca de aventuras. Mas nem de longe vivi tudo o que eu estava pensando que ia viver...

Fiquei em silêncio. O homem olhou mais uma vez para a casa distante, e depois de volta para mim, ainda sem entender. Era óbvio que ele estava movido pelo mesmo impulso que eu tive, havia doze anos, e que simplesmente não conseguia imaginar-se chegando ao ponto em que eu estava. Preferiu não pensar no assunto, agitando a cabeça levemente e voltando sua atenção para o cantil. Fechou-o, sem pressa; guardou-o de volta na mochila. Quando começou a se afastar, sentei-me em uma pedra e olhei para lugar nenhum. Ele se deteve apenas alguns passos adiante.

– E você vai simplesmente... desistir?! – perguntou.

Eu sorri.

– Estou sentado nesta pedra há onze meses.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O acidente

Tentando ter sobrevivido ao último colapso.

Vida é um negócio tenso.

Logo terei renascido e serei muito outro. Até tem graça. Meu coração de terra fixa e ascendente em água fixa talvez até gostasse de ser sempre o mesmo, mas não deu, não foi, a caravana avança. Mas como eu tenho pena de mim mesmo aqui pequenininho, ferido, confuso, etc! Deveriam fazer uns manuais emocionais individualizados, nada de genéricos. Sim, estou envelhecendo na lista de espera. Aí vem um tsunami vez ou outra, um Katrina, um Vesúvio, uma hecatombe. E pôxa vida, Deus, eu não sou Deus nem nada. A gente fica assim no meio dos destroços, imaginando se encontrar a caixa preta serviria para alguma coisa. Por que que as almas não têm pronto-socorro? Falar. Falar. Falar ocupa os pensamentos. E a gente sente menos – quase não sente, quase não sente – até que chegue o dia em que a gente aprenda a rir de como alguém no mundo pode ser tão bobo. Mas nada disso – nada de promessas por enquanto. Às vezes é preciso uma catarse a seco. Amar por implosão. Morrer o que ainda presta. E esperar, e esperar, e esperar.

Ressurreição é coisa de domingo.

domingo, 7 de junho de 2009

Proposta de um primeiro encontro

Começaremos bem. Assim. Você confessa que é dissimulada. Cínica. E sempre se deu muito bem nas manipulações sutis. Você ganhou um ponto. Ou dois. Por ter reconhecido que eu não sou tão cego. E aí confesso eu. Que vou usar você pra alimentar minha vaidade. Testar limites. Jogar na cara da mulher a menininha acuada. E dessa vez sou eu que ganho um ponto. Ou dois. Por não te achar assim tão burra. E só depois é que começa o jogo. Um jogo limpo. Talvez não passe do primeiro tempo. Talvez eu não me importe de rachar o prêmio.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Muito mundo

À luz vadia de uma manhã de nuvens cinzas, percorro em pensamento o centro da metrópole que já chamei de casa. Num quarto distante, na província, cortinas balançando ao vento, deito-me completamente ausente: nesta manhã sou puro ontem; pura imagem projetada, dançando com as sombras sobre as pautas do caderno. Ruazinhas estreitas, céu recortado por concreto e, nas fachadas, nomes, telefones, logos: placas de escritórios que a gente nunca soube realmente pra que servem. Na mesa de um café, eu saboreio o gosto de optar pelo meu gosto em uma taça de café gelado. E de lá, sem pressa, percorro em pensamento as ruas do meu bairro, a muitas quadras de distância. Trilhos de trem, aglomerados de prédios. Nalgum lugar alguém pregou o anúncio: Vende-se este mercadinho. Parece coisa da província. Ou é. E como eu poderia não me confundir com tantas ruas, tantas letras, tantas cidades pra um só par de olhos?

sábado, 30 de maio de 2009

Poema de adeus

Diremos que foram belas também as tempestades, e que somente pelo terror de sua beleza nos arrastamos tanto em pensar nelas. Muito mais belos e numerosos, porém, foram os dias de sol sobre a paisagem que se coloria intensamente pelo amor que estendíamos a ela, na embriaguez de nos olharmos antes, um ao outro, com o sorriso acolhedor e amplo da posse consentida. Assim que as minhas mãos têm esta marca; meus lábios, meus olhos, meu peito nu – todo o meu corpo agora solitário expõe a tatuagem de um dia ter provado a materialidade do teu. Obrigado, amor que amei, por ter seguido ao meu lado ao longo do tempo e da terra. Obrigado por ter sido a companheira leal e justa de meu coração crescente, sedenta como eu era de prazer e dor, pelo caminho incerto das contínuas descobertas. Obrigado por guardar comigo a mesma gama de memórias, milagres, pecados e pedras: tudo o que um rio carrega, tudo o que um rio desperta, tudo o que um rio contém e revela para a chuva que o renova.

sábado, 23 de maio de 2009

O Ator

Tinham combinado que jantariam juntos depois da apresentação, em comemoração ao fim da temporada. Francisco relutou a princípio, alegando que estava ansioso para dar início às suas férias-fora-de-época, mas o restante do elenco tratou de convencê-lo – a peça havia sido um sucesso de público e de crítica; o teatro estaria lotado naquela noite e um caso assim era tão raro para eles que seria uma heresia não comemorar. Francisco sorriu, entregando os pontos. Ser o único solteiro em toda a equipe era um motivo mínimo, infantil até, para não estar entre amigos em uma ocasião realmente importante como aquela. E talvez – pensou – se Ana Clara fosse assistir à peça ele pudesse convidá-la; quem sabe, e assim a noite estaria completa. Não voltaria a pensar no assunto. Era preciso concentrar-se em seu trabalho.

O teatro estava mesmo lotado. Mil e duzentas pessoas mergulhadas no mar negro para além da ribalta, reagindo ao menor dos gestos realizados em cena. Francisco desempenhou o seu papel com uma devoção religiosa, convencido a abandonar qualquer emoção ou pensamento que não pertencesse ao personagem. E naquela noite todos os atores contribuíam muito, embriagados que estavam pela paixão por seu trabalho, decididos a se despedir do público em grande estilo. Foi a melhor apresentação que já fizeram. Quando o mar negro se acendeu, as mil e duzentas pessoas se levantaram de uma só vez para um aplauso estrondoso. Era a consagração do artista; o melhor pagamento que eles poderiam ter.

Vertigem. Francisco não podia imaginar contradição maior: nunca em sua vida se sentiu mais só. Corria os olhos por aquelas gentes, à procura desesperada de Ana Clara, sem reconhecer um único rosto. E de repente não ouvia mais. Encontrar Ana Clara era só o que importava – não via nenhum sentido na palavra “sucesso”, não fazia questão de receber um único aplauso pelo que era apenas seu trabalho. Um trabalho como outro qualquer: como fabricar relógios, como carimbar as cartas no correio.

Somente quando as luzes do palco se apagaram e a cortina começou a ser fechada foi que ele avistou Ana Clara, na oitava fila perto da parede. Ela estava acompanhada por um grupo de amigos, e obviamente se preparava para deixar o teatro. Ela não iria vê-lo, no camarim. Não falaria com ele. Num impulso, Francisco se lançou ao corredor, pensando que seria fácil alcançá-la antes que ela chegasse à porta. Mas foi uma odisséia. A cada passo, alguém o detinha para lhe dar os parabéns pelo “excelente”, “impressionante”, “maravilhoso espetáculo”. Francisco se demorava o mínimo possível: devia soar arrogante e ingrato, mas não havia tempo nem motivos para se preocupar com sua imagem. Ana Clara estava quase saindo. Estava na porta quando ele, espremido entre um casal de velhos, conseguiu estender o braço e tocar em sua mão. Ela se virou, encontrou seus olhos. Sorriu.

Ele era um adolescente bobo e apaixonado. Tudo em volta desapareceu, e só o que havia no mundo era o sorriso iluminado de Ana Clara. Ele sorriu também, como um menino tímido. “Vamos sair para jantar”, disse, imaginando que o convite estaria implícito. Não conseguia pensar em nada melhor para dizer. Estava ocupado demais em se sentir fora do tempo.

– Onde? – ela perguntou.

Um outro rosto surgiu em seu lugar. Um completo estranho, com um brilho emocionado nos olhos, agitava a mão de Francisco e repetia que nunca em sua vida, nunca em sua vida ele tinha visto uma peça tão bonita. Francisco demorou demais para desfazer o sorriso. O mar de gente, os amigos de Ana Clara terminaram de arrastá-la para fora do teatro.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O Poeta

Aquele menino nasceu com um defeito no cérebro – não, com poderes sobrenaturais – não, ele sofreu um trauma na infância – não, ele escrevia poemas, e por volta dos onze anos ele descobriu que – não, ele já passava dos vinte – descobriu que podia enxergar o inferno dos outros – não, ele decodificava os ambientes emocionais à sua volta – não, ele era um retraído incurável – não, ele podia ler pensamentos e prever o futuro – não, ele era só sensível demais e começou a perder a sanidade porque – não, na verdade ele achava tudo muito divertido, mas estava meio cansado de ouvir que talvez fosse melhor para ele procurar um psicólogo – não, um pai de santo – não, a bíblia – não, ele era índigo e tudo se explicava – estava cansado de ouvir demais quando ninguém estava realmente preocupado em entender – não, em ser um pouco mais parecido com ele – não, em deixá-lo viver a própria vida em paz – não, em explicar de que forma ele estava sendo mesquinho e egoísta – não, em parar para ouvir o que ele sabia muito bem – não, ninguém estava preocupado em parar para ouvir o que ele pensava sobre o amor e todas essas coisas que podem salvar o mundo – não, que só servem para fazer poemas – não, sobre as coisas que realmente importam, porque ele acreditava em sua cabecinha de menino – não, de fracassado – não, ele sentia em seu coração de poeta que alguma coisa estava muito errada – não, que o mundo ia acabar em 2012 – não, que usar palavras como amor e liberdade fora de outdoors não deveria ser considerado escapismo, e ele queria mudar os conceitos das coisas – não, ele queria se matar – não, ele queria ajudar enquanto era tempo – não, ele queria se matar – não, ele só queria ver a vida de outra forma – nem sempre ele queria se matar – o que ele mais queria era escrever a frase perfeita, a frase mais bonita que alguém já escreveu, a frase que ficaria na cabeça de todos pelo resto da vida para que eles se lembrassem do que realmente importa – não, não importa, mas ele queria mesmo escrever uma frase bonita – não, ele queria que nada mais precisasse ser dito – não, ele queria apenas descobrir se alguém era capaz de enxergar a mesma beleza que ele neste mundo já saturado de frases tortas.

domingo, 17 de maio de 2009

O Professor

Agradeço pela lição de hoje, mas sou eu quem não quer aprender a ter acessos de fúria. E honestamente não me importa quem você elegeu pra ser o grande responsável pelos seus fracassos: mais cedo ou mais tarde os caminhos apontarão pra dentro. É preciso crescer muitas vezes pra entender que a brincadeira não termina, e que ainda é tudo variação de ser ou não dono da bola, de estar ou não à frente no placar, de concordar ou não com as regras em um jogo sem juiz. E no final das contas, o que nos resta é simplesmente o fato de que estamos juntos, sem saber quem ensina a quem. Numa tarde eterna de domingo, sob o sol no campinho do bairro.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Instante

É a força de estar vivo que se espalha por meu sangue sempre que a palma da sua mão se encosta à palma da minha mão, seus dedos percorrendo os vãos entre meus dedos, e olhamos para longe como se estivéssemos ainda sós em mundos separados, mas tão próximos, tão iguais na superfície lisa da sua pele onde ela encontra a minha, como um par de espelhos voltados um para o outro, camadas sobrepostas de uma mesma tinta, irmãos siameses por escolha própria, e eu tenho essa impressão de que conheço a história da sua vida desde o tempo em que a maior felicidade que você podia sentir guardava-se entre os pelos de um tapete branco onde você rolava à noite, no vazio da sala, e sinto a liberdade que você foi conhecer quando soltou as mãos pela primeira vez descendo o morro em uma bicicleta azul-turqueza, e vejo com seus olhos o voraz fascínio que acendia os olhos do menino a quem você entregou o seu primeiro beijo e a vertigem da primeira noite em que se viu despida diante da nudez de um homem, e reconheço as marcas do cansaço que você sentiu nos longos anos em que procurou repouso em corações fechados, até que finalmente a vida se lembrou de ter-me feito só para o momento em que tropeçaríamos um no outro em uma loja de conveniências, ou desprendidos de qualquer noção de tempo entre as ruínas de uma civilização extinta na América Central, justificando enfim nossa presença neste mundo em que aprendemos a beber o fogo desde o coração do sol, na extremidade de um dos braços da galáxia, no universo que há na ponta dos seus dedos que afinal se fecham como um polvo sobre as costas da minha mão.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Sobre a melancolia

Quando você estiver em minha casa, leve de lá um poema do Vinícius que se chama Ausência; minhas anotações sobre Penélope; todas as músicas do Clube da Esquina. Em uma das gavetas do escritório, você vai encontrar o meu caderno de segredos revelados – amores eternos, um medo sem fim de viver – que eu gostaria que você queimasse sem pensar em ler. Uma caixinha de música na cômoda do quarto, presente muito antigo, não deve nunca mais tocar seu Pour Elise: leve um martelo. Quando você estiver em minha casa, não deixe o seu perfume em cada cômodo para eu sentir mais tarde; abra as cortinas contra o escuro; tire do vaso as flores muito secas. Na lavanderia, há sacos de lixo pretos: coloque neles minha boa memória, minha paciência para a espera, meu fascínio bobo pelas coisas que não posso ter. E, se couber ainda, leve também os fins de tarde, as noites de chuva, e sobretudo o riso interminável dos vizinhos. Não sei como me desfazer de tantas coisas. Preciso acreditar que elas jamais me pertenceram.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Como escrever seu próprio manual de sobrevivência

1. Comece registrando fatos sem nenhuma importância, por exemplo: "Hoje um inseto morreu no meu copo de suco".

2. Altere o sentido de algumas frases, de modo que elas acabem parecendo um pouco inusitadas. Um exemplo simples: onde você escreveu "Fui passear em uma estrada cheia de hortências", escreva "Passei o dia tentando acompanhar as hortências, mas elas sempre iam para o outro lado".

3. Escute músicas de amor, de preferência as de um amor que deu certo. Não é preciso estar apaixonado: apenas cante junto e finja que está. Faça uma lista das suas preferidas e atualize quinzenalmente.

4. Faça uma lista dos melhores momentos da sua vida. Demore-se bastante em cada um, procurando identificar as sensações que eles despertam. Lembre-se de que viver o presente não tem nada a ver com não regar flores de ontem.

5. Não deixe o seu manual se viciar em um estilo. Quando achar que a ternura está virando melancolia, que as imagens vão ficando exageradamente coloridas ou que as declarações de amor começam a implicar com os defeitos do outro, tente escrever sobre alguma coisa que nunca antes havia passado pela sua cabeça.

6. Mas também não se vicie em evitar os vícios.

7. Prefira os lápis – mas nunca, em hipótese alguma tenha medo de se arrepender daquilo que escreveu. Para este caso, sugiro acrescentar ao seu manual o subtítulo: Ao contrário do que se imagina, sobreviver exige uma boa dose de fraquezas.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Claro

Coração transparente, felicidade iluminada ao som das águas – brincar como criança à beira da cascata; rolar na grama entre formigas, cócegas, risada que se solta e vai pousar num galho alto ouvir notícias sobre o azul; abrigo e segurança desse estar presente e ter visitas: planos aéreos pra daqui a dois anos, a sensação ligeira de uma encarnação anterior; diamante ao sol; brilho dos olhos; a vida se descobre alegre e leve e doce porque toda angústia, todos os medos, tudo que fere ou perde recebeu enfim de todos os tarôs, todos os búzios, todas as linhas da tua mão a mesma e única resposta: Bem mais simples.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Crônica de um segredo que não me pertence

Raios de luz, cristais de muitas cores ocupam numa dimensão desconhecida o mesmo espaço em que eu, subitamente esquecido de tudo, enxergo apenas os teus pés voando escada abaixo em direção a mim. A concretude do teu corpo em roupas coloridas, teu cabelo solto, os braços e sorriso abertos vão curvando o espaço à tua volta na medida exata de um retrato; tudo é sólido e real, mas numa intensidade nova e infinitamente superior. Mas ainda assim, quanto mais próximo de ti menos compreendo essa realidade do mundo: para mim não somos mais do que dois personagens mergulhados em névoa, completamente imóveis um em frente ao outro, olhos nos olhos, sem compreender como é possível não estarmos juntos numa só matéria. E finalmente então, sem nada receber de ti além da breve sensação de um toque, percebo a minha pele dissolvendo em fogo as próprias cicatrizes, rugas, marcas – tudo o que nasceu do tempo; sou jovem outra vez e nada me ameaça: meu coração transborda lentamente a sua fonte oculta de imortalidade.

sábado, 25 de abril de 2009

Passar

Um a um
caíram meus sonhos.
E eu não estava lá.
Ninguém mais estava.
Lá.

Quem banhasse meus sonhos,
vestisse-os de prata.
Quem os guardasse um a um,
talvez
com o sal da palavra.

E como estar certo, agora,
de que lá onde nem eu estava,
entre os meus sonhos caídos,
nada
mais
pulsava?

domingo, 19 de abril de 2009

Das pequenas surpresas

Só um pouquinho de atenção, bebê, e você descobre que a vida extrai poesia de si mesma. Essa vida confusa, essa vida sombria que levamos por fazer a opção de não entrar no jogo – sem medir a força, sem nenhum aviso prévio nos aplica um golpe ao acender a luz; ao encontrar velhos amigos; ao dobrar a esquina calculando as quadras que ainda faltam. Mas um golpe de beleza, meu bebê, aquilo que outros chamam de golpe de sorte. Só que então pensamos que o presente não é nosso, que não pode ser; que não o merecemos, afinal, de tão acostumados que ficamos a esperar sempre o pior. Porque nos viciamos na acidez da ironia; porque gastamos as palavras pra falar no amor como um efeito especial na tela do cinema. Mas um presente da vida, bebê, não pode ser ignorado, transferido, jogado fora ou devolvido ao remetente. Porque ele vai ficar ali pregado bem no centro da salinha de TV, até que você se canse de estar sempre tropeçando nele – e então perceba, pro seu grande espanto, que ele é mais ou menos a mesma água que você buscava no meio das noites.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Mapa das horas

Canto porque fui como qualquer criança – e era o meu jeito de não escutar o que me incomodava.

Canto porque trago em mim o que a memória não apaga: amor secreto, alto do muro, vento no rosto ao passear de bicicleta.

Canto pra não me esquecer de um tempo em que vaguei com medo, ferido e abandonado – e ao chegar em casa descobria flores no tapete em frente à porta.

E um tempo mágico de anjos e cataventos, de estrelas que caíam no telhado e a gente não sabia o que fazer com elas.

Canto porque tudo segue vivo – e eu canto finalmente pra não me esquecer de agora.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Sob um céu de abril

"Sim, estou apaixonada por você", ela disse. Havia algo de aéreo naquelas palavras, e havia essa poeira que pousava mansamente sobre um assoalho de madeira. Em uma biblioteca simples, no coração de um parque em Curitiba. "Você pode levar o que quiser", ela continuou, depois de longa pausa; "os livros que você emprestou, os quadros que você pintou pra mim. Pode levar aquelas noites todas que eu passei sonhando que você também me amava; as músicas de amor que me lembravam de nós dois; aquele monte de coraçõezinhos bobos que eu tracei com o dedo em vidros embaçados". Seria inútil responder. Nem nos olhávamos: mantínhamos o olhar perdido fora da janela, contemplando o lago, o seu reflexo pálido à luz da manhã. Ela continuava: "Pode levar a minha última esperança de me sentir segura – porque eu acho outra; pode levar a sensação intensa de estar viva que me vem só de escutar teu nome; pode levar essa alegria sólida, concreta, real e ao mesmo tempo mágica, infinita, delicada. Pode levar. Eu acho outra". Não resisti à vontade de vê-la enquanto ela falava tudo aquilo. Por pura crueldade trágica. Eu a amava perdidamente, mas sabia que nossa história não iria adiante: vivíamos em mundos separados. Eternos como Adão e Deus no teto da capela. "Mas uma coisa você nunca vai poder levar", ela dizia enfim. E eu já sabia o que era. Porque era o que eu também diria se não fosse ela quem tivesse começado. "Você nunca vai poder levar uma certeza que eu tive no dia em que viemos aqui juntos pela primeira vez. Você nunca vai poder levar essa lembrança clara do dia mais feliz da minha vida. Você nunca vai poder levar o que ficou em mim: você nunca vai poder levar o que já é você dentro de quem eu sou".

sexta-feira, 10 de abril de 2009

A terceira noite

Na terceira noite de solidão, as coisas já não eram mais tão divertidas como nas outras duas. Viu-se de repente no centro da sala entre girassóis de plástico, versos de Cecília, porta-retratos vazios, um copo de conhaque, álbuns do Legião Urbana, pratos sujos, um par de meias, controles remotos, almofadas de renda, um violão, um abajur, um lápis, uma teia, o tapete, o cobertor azul, a tela da TV, o tédio e aquela ausência aterradora de outro corpo.

Na terceira noite de solidão, a vida se cansou do fato de poder ser qualquer coisa. Pensou em escrever sua quadragésima carta de suicídio, em telefonar para desconhecidos, em publicar um livro de sonetos, em botar fogo na casa, em alugar um filme, em escalar um paredão de pedra, em atirar ovos em vira-latas, em não tomar um porre, em procurar no orkut a antepenúltima namorada, em adotar uma menina chinesa, em dormir debaixo do chuveiro, em comprar um video-game, em arrumar o quarto, em ficar catatônico, em fazer uma apresentação em Power Point com um texto ruim atribuído a Shakespeare, em seduzir, em se deixar ser reduzido, em inventar o que fosse para não ter que perceber aquela ausência aterradora de apenas outro corpo.

Na terceira noite de solidão, a lógica se diluía por completo. Começou a elaborar um único romance que incluía amnésias induzidas, profecias maias, sofrimentos de um bobo-da-corte, namoros secretos entre adolescentes primos de terceiro grau, doze carnavais, sete viagens no tempo rumo a um único dia, uma cantora de ópera, um pequeno tornado, alusões ao Canto dos Centauros do Inferno de Dante, luta de classes, uma voz incorpórea percebida como "quente e açucarada" por um homem enlouquecido em sua oitava noite de solidão, comentários técnicos sobre a arquitetura dos prédios mais antigos de Buenos Aires, uma rosa, um capítulo inteiro descrevendo os movimentos aleatórios dos peixes em determinado ponto do oceano, astronautas que descobrem que nunca mais poderão voltar à Terra, esportes radicais, instrumentos de tortura, mágoas, mangás e duas xícaras de cappuccino fumegante.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Carta a um companheiro de batalha

Velho amigo;

Ainda pensando em melhorar o mundo, mas não muito atento ao que acontece nele desde que entrei em greve. Pelas condições precárias de trabalho, pelo ambiente insalubre; mas também por causa desse meu acúmulo de funções. Tranquei-me em casa e pendurei um cartaz na porta com os dizeres: "O mundo é dos espertos; eles que se virem" – ok, foi num momento de raiva, agora eu já tirei. Mas estou começando a achar que transformar o mundo é uma capacidade atávica, e estamos justamente naquela geração em que o gene não se manifesta. Será que alguém aí não pode dar uma mãozinha?!... Você sabe que eu tenho essa tendência ao messianismo, e me sentir sozinho não ajuda muito. Começo até a achar bonito as crianças daqui me chamarem de Jesus por causa dos cabelos e da barba que eu não tiro por preguiça (e uma menina da faculdade disse que eu lembro as imagens dele por causa dos olhos tristes!) Também é divertido reparar que da capital para a província eu fui do bairro Cristo Rei para o Menino Deus – veja bem, não é um detalhe delicioso? – mas a verdade é que eu gostaria mesmo de estar ocupado com alguma coisa mais importante do que isso. Não estaria na hora de organizarmos algumas reuniões secretas? Pichar muros, distribuir panfletos, ministrar palestras para os maiores interessados? Tem muita gente por aí pensando que somos do tipo "sem causa": não seria o momento de publicarmos nosso manifesto? Com reivindicações mais claras? "Queremos um mundo melhor", você sabe, caiu em descrédito – já deve ter estado em umas duzentas campanhas publicitárias, e só piora. Pense nisso, por favor. Depois conversamos. Mas não demore muito, sim?, porque daqui a pouco vão estar cobrando e eu realmente não queria ter que dar nenhum sermão na montanha.

Abraços.

domingo, 5 de abril de 2009

Transitória

Deixo você dormindo até mais tarde, saio pra comprar o pão. Em pouco tempo a casa toda vai ter cheiro de café com flores; um sorriso a mais; o amor se espreguiçando no domingo. Bom dia misturado ao riso lá de fora, uma voz pequena repetindo ao pai eu-já-consigo-andar-tudo-isso-sem-rodinhas. Quem foi que teve a ideia de lhe dar uns olhos tão azuis? Eu posso lhe falar do mundo, de tudo que ele teve que passar pra que estivéssemos aqui – esse sentido último. Mas não que eu tenho que mostrar mais uma vez como espalhar manteiga!? (Podemos rir mais alto, pro escândalo completo dos vizinhos.) Eu passaria a vida inteira vendo o sol nas suas pernas. Mas antes do café esfriar, meu bem, experimente um pouco dessa torta; do coração da rosa; daquela nuvem que eu tive que mandar fazer...

quinta-feira, 2 de abril de 2009

De repente uma tristeza adolescente

Visão Noturna do Centro fotografado da Reitoria UFPR
por Adilson Gomes

Seria bom, amiga, se eu conseguisse explicar por que meu coração ficou pequeno de uma hora para a outra; mas só sei que foi assim, e eu tive que dizer licença eu vou comprar um mate ou vou tomar um bonde; até que no fim, desculpa, eu acabei me debruçando na janela e tive que chorar tudo isso enquanto o professor falava. A gente não escolhe, amiga, nem a dor que sente nem a hora de sentir – seria bonito, seria um passeio hippie pelo bosque, disco infantil contendo uma historinha inofensiva para o seu menino, seria um ídolo de ouro com a nossa cara se a vida conseguisse ser menos estúpida e canalha como acaba sendo vez ou outra. Então é tudo uma questão de segurar as rédeas? Então não é num tigre que montamos? Seria bom, amiga, se fosse uma questão de ter vontade ou lucidez. Mas a gente simplesmente não escolhe o amor que sente. A gente não escolhe não encontrar ninguém. A gente não escolhe esse cansaço no final do dia, no alto de um prédio em uma aula de Grego Avançado, e se sentir completamente zonzo e só quando ao olhar pela janela reparamos no cair da noite sobre uma cidade que não tem mais fim...

***

hoje à noite, diz Leminski,
(anote em seu caderno)
hoje à noite
lua alta
faltei
e ninguém sentiu
a minha falta


É bobo, eu sei. Mas por hoje é tão... verdade...

terça-feira, 31 de março de 2009

Luzia

A primeira vez que amei alguém foi aos sete anos de idade. Soube num domingo, num passeio de carro com meus pais pela cidade. Chovia muito. Eu ia sozinho no banco de trás, talvez mal humorado, contemplando em silêncio a chuva na calçada. Foi quando ela surgiu. Luzia. Uma menina da minha sala. Nunca soube o que ela fazia ali, sozinha na chuva, no centro da cidade. Estava encharcada, caminhando devagar. A cabeça baixa, os pés quase descalços arrastando as havaianas.

Passei o resto do dia perturbado. Não consegui comer. Demorei para dormir e tive sonhos incômodos. Para mim era novo. Na manhã seguinte, não sabia mais o que fazer para passar o tempo – já queria estar na escola. Queria vê-la. Queria decifrá-la. E quando finalmente estive lá, sentado em minha cadeira de palha, vendo Luzia concentrada em uma aula de Ciências Sociais, tomei a decisão mais corajosa e ao mesmo tempo natural que poderia ter tomado: fui beijá-la.

Na boca, sem nenhuma pressa.

A sala toda estremeceu. Luzia me olhava com uns olhos muito grandes e, um pouco indelicada, limpava meu beijo com as pontas dos dedos. A professora havia parado de falar: olhava para mim entre furiosa e aturdida – e nada mais no mundo se movia. Eu olhava de uma à outra, sem saber o que fazer também. Estava confuso, oco, profundamente decepcionado.

– Não tem gosto de chuva – murmurei.

Foi um amor muito breve.

sábado, 28 de março de 2009

Sentido

Na contramão do outono, vou recolhendo a poesia delicada de nascer. Para muito além do antigo vício de ver sombras, na intimidade do meu lar, onde não há ninguém, minha alma redesenha a si mesma como flor alguns segundos antes de se abrir. Lá fora não há mais culpados: todas as primeiras pedras foram lançadas à exaustão – até restarem estas mãos vazias e cansadas, mãos sem afago, mãos envelhecendo a cada dia. E um espaço deserto que só o espírito preenche, no exercício de gerar ou enxergar o que se possa chamar de Beleza. Na incidência da luz, na palavra terna, o que se encontra não será jamais algum conforto externo, que afinal não há, sendo outono, mas a música possível de um coração que ainda sente, embalando com cuidado a sua própria pulsação desordenada. O homem sensível, o homem chorando lágrimas reais não era enfim aquele que perdia, mas o que reconstrói, pai de si mesmo, irmão e filho, o abrigo sólido de uma esperança finalmente mais madura. Virá a primavera, então. E o seu nome deixará de ser colher as flores, e passará a ser somente cultivá-las, a partir de si, para quem sabe um dia compreender as que nasceram, se nasceram, naqueles outros tantos corações desordenados. Não mais do que esse pouco. Não mais do que esse sonho, agora tão distante, mas tão possível que a maior ingenuidade é ainda pensar que seja um sonho.

domingo, 22 de março de 2009

Anotações de sábado

1. A chuva simplesmente mergulhou no dia: as opções estão bastante reduzidas. Pegar a estrada só pra ver a textura da luz refletida no asfalto.

2. Deixar fluir o pensamento, sem rever, sem represar. Adágio da Sonata K. 332 de Mozart e um pacote de caramelos. Toda a realidade se dissolve numa abstração cinzenta.

3. Excessivamente melancólico. No meu caderno, estava sublinhado duas vezes. As sensações flutuam sem recursos práticos, e eu começo a duvidar de que já tenham tido um rumo definido.

4. Chegar até você. Urgentemente, porque a chuva engrossa; não mais que segurar a tua mão e te dizer que logo passa, que não estamos tão perdidamente sós, que pelo menos eu te amo o meu amor de pássaro.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Flashback

A cidade é muito grande para estar tão quieta, Nina, para contar num dedo só os poetas trágicos que, avidamente, bebem a meia-chuva nessas ruas amarelas de paralelepípedos. Só a teu lado, Nina, só quando você cruzava silenciosa a noite que eu também sofria havia algo de alegre nesta escuridão borrada. Até chegarmos à penumbra de um apartamento baixo, de poltronas velhas, de cigarros e conhaque ao som de uma irlandesa de quem nunca perguntei o nome. E eu te amava sem palavras, sem sentidos, só um deslumbramento vago pelo branco delicado da tua pele. Nina, Nina; você falava muitas coisas que eu não entendia: romancistas tchecos, dançarinas búlgaras, filósofos sul-coreanos povoavam teu apartamento como convidados óbvios – e como eu manteria o meu orgulho sem saber quem eles eram? A tua companhia era o mistério bruto, Nina, indevassável, numa solidez incômoda de tanto "agora". E agora um mais-ou-menos dentro do meu peito; não mais que um nome bêbado de meu vazio-memória, madrugadas mortas, fantasma que escorreu do meio-fio para os meus pés que são os últimos na noite do planeta.

domingo, 8 de março de 2009

Oferendas possíveis

Nem reparou na mancha negra que deixou com o dedo no botão da campainha. Olhava em volta com certa avidez, à procura de galinhas no quintal – não fazia sentido não haver nenhuma – e observou atentamente alguns detalhes da arquitetura da casa. Demorou para perceber a porta entreaberta, o rosto claro que se espremia no espaço limitado por uma corrente, o olhar de receio que ele conhecia tão bem. O menino não teria mais que doze anos. Passou a mão pelos cabelos, pigarreou, tentou parecer confiável.

– Pode dar uma maçã – disse.

Deveria ter soado mais como uma pergunta. O menino arregalou os olhos, grunhiu alguma coisa como "espera um pouco" e tornou a fechar a porta. O ruído seguinte era o de duas voltas com a chave. O homem bêbado, sujo e maltrapilho desabou sobre o degrau da varanda e escondeu o rosto para chorar. Era mesmo um exagero imaginar que teria entrado na casa. Ficou ali por um bom tempo, sensivelmente mais embriagado com a avalanche de velhas sensações, até que a voz distante do menino veio chamar-lhe de volta ao momento presente.

– O senhor não vai poder ficar aqui – dizia ele.

Estava usando roupas de escoteiro. Olhava firme para o visitante, agora com a porta totalmente aberta, e segurava uma maçã na mão direita. O homem ficou de pé e se permitiu uma olhada rápida para o interior da casa. O menino recuou um passo; ergueu a fruta em direção a ele, como se dissesse que era tudo o que ele poderia levar. Ele pegou a maçã e imediatamente levou-a à boca.

– Mas o senhor precisa ir comer lá fora – insistiu o menino.

O homem olhava para ele quase com desinteresse. Continuou a mastigar sem se mover um passo, e quando terminou disse tranquilamente, numa voz que então soou mais limpa:

– Morei aqui tinha a sua idade. – Fez uma pausa, agitou a maçã no ar e acrescentou: – Eu que plantei essa macieira no quintal dos fundos.

O menino pareceu atordoado. Para o homem, era o bastante: a confirmação final de sua vitória. Sorriu brevemente, inclinou a cabeça em sinal de agradecimento e seguiu cambaleando em direção à rua.

Quando ele desapareceu, o escoteiro calculou que aquela boa ação deveria valer por pelo menos uns dois meses. E a perfeição foi justamente não ter dito nada. Mas o fato era que não havia macieira alguma no quintal dos fundos.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Do princípio

O que é do coração pede licença pra nascer. Debate-se em palavras, fere, é ferido, envergonha-se de ser tão frágil. Não sabe o que é beleza; não atende ao que se espera: apenas nasce num pedido de desculpas, assustado de existir, trêmulo, tímido. Nem saberia o que fazer se lhe pagassem o seu preço pelo encantamento.

O que é do coração leva o seu tempo – conquistando espaços. Não pede muita coisa além do olhar atento, da lembrança de que vive; mas não rouba, não consome, não invade. Existe, e isso é tudo o que lhe cabe. No ponto em que o deixamos, como um livro e, se for quadro, tem mesmo um tempo de secar a tinta pras camadas que ainda faltam. E permanece assim, e exala o seu perfume denso.

Até que um dia, cansado de conter a própria natureza, o que é do coração escapa de si mesmo. Rompe as grades; transborda como lava e rocha e asa pra habitar um corpo – e nele pulsa, e nele acorda, e nele move: o que é do coração não tem mais volta; o que é do coração tornou-se um homem.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Carícia

Tire os sapatos. Não quero ouvi-los sobre as tábuas da varanda. Estou fazendo parte da paisagem; estou cuidando a brincadeira das crianças. Não fale nada. Sente-se ao meu lado; ajeite com a mão as dobras do vestido. Longe, veja, o sol poente só ilumina as árvores no topo das montanhas – saboreie um mate; eu saboreio o instante de ter olhos verde-ouro. Mas em silêncio, agora. Só mais um pouco. A pele se prepara para um toque, para uma carícia. Que seja doce. O gato que se enrola em nossas pernas, o nome dele é noite.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Carta a um aprendiz

Caro amigo;

Sinceramente reconheço as dificuldades que você diz enfrentar, e peço desculpas por não ter previsto que elas poderiam surgir. E de fato, como você me expôs em sua carta, a invocação da chuva para alívio das sensações desagradáveis do espírito raramente funciona em ambientes urbanos, onde a concentração de mana é um pouco menor ou, como preferem alguns, menos pura. Não se deixe ver, meu caro, repetindo os nossos gestos de invocação em praça pública ou em filas de supermercado: dificilmente eles produziriam efeito, e as pessoas à sua volta não ajudariam muito em vê-lo como um dançarino excêntrico exibindo sua arte onde bem entende. Sugiro que você realize esta magia bem mais simples, que eu já deveria ter-lhe ensinado, e que apesar de levar mais tempo exige consideravelmente menos mana:

Sente-se no chão. Prefira os pisos de azulejo, cimento cru ou qualquer coisa assim que remotamente lembre as nossas plataformas de pedra. Feche os olhos e se conecte às sensações desagradáveis. Concentre-se bem. Perceba que elas são moldáveis, como quaisquer energias, e lentamente comece a reuni-las – use as mãos, não se limite ao pensamento – em uma esfera compacta do tamanho de uma bola de tênis. Deixe essa esfera flutuando à sua frente, na altura do rosto, e observe-a bem com os olhos da mente. Muito cuidado nessa fase: as sensações desagradáveis são esquivas, e tentarão a todo custo retornar ao seu espírito. Afaste-as repetidas vezes com a mão direita, mantendo-as na esfera compacta, e diga em voz alta quantas vezes julgar necessário: Já estamos desligados. Somente quando estiver certo de que as sensações permanecerão na esfera, levante as duas mãos em sinal de paz e comunique: Vou lhes dar forma. Pergunte qual a forma que elas gostariam de ganhar e mãos à obra.

A esta altura, seu próprio mana já estará fluindo em quantidade suficiente para qualquer materialização simples, o que invariavelmente será o caso. O mais comum é que as sensações escolham uma forma artística – florzinhas de biscuit, estátuas de jade, blogues de poemas – e acredito honestamente que você não terá a menor dificuldade em atender-lhes o pedido.

E não se espante, meu amigo, se acaso elas optarem pela forma básica da lágrima. Lembre-se sempre de que as sensações desagradáveis não são mais que uma desordem temporária no mana, que sem descanso lutará para voltar à sua forma pura.

Com votos de melhoras,
receba o meu sincero abraço.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Terra estrangeira

Não é que eu tenha medo – nada disso é novo. A sensação de caos é sempre a véspera de um Big Bang possível. Se estou assim, é porque assim eu devo estar: meio confuso. Imóvel à beira do caminho. Tenho certeza: você foi feita pra que eu me perdesse, e é só questão de tempo até que eu recomece. Depois, até aceitar o engano; depois até acertar o grito. Mas por enquanto eu só cheguei até uma placa de "perigo".

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

O Signo de Touro

Era preciso que alguma coisa fosse eterna. Que estivesse lá todos os dias com o mesmo gosto, com o mesmo rosto. Arte rupestre, provérbio chinês, Acrópole, rima batida. Talvez como um eixo ao redor do qual pudesse gravitar o novo – um novo reverente. Luazinha submissa. Pra que fizesse sentido a obrigação da jornada em um mesmo corpo. Com um único nome. Pisando o que em qualquer lugar se chama pedra.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Identidade

Quando ela disse "eu gosto muito de você", não era a fama, a grana, o diploma na parede; não eram os poemas que eu mandava; não eram as canções que eu lhe fazia. Quando ela disse "eu gosto muito de você", não disse mais "doutor", ou "professor", ou "mano velho"; não disse nem meu nome; não esperou que eu respondesse nada. Falou assim, olhando nos meus olhos, mas meio sem pensar e por acaso, como se dissesse "é terça-feira", ou como se bebesse um gole d'água. Quando ela começou "eu gosto muito", e estava tão inteira e tão sincera, podia só dançar diante do espelho – que eu ia ser "você" na imagem dela.

sábado, 31 de janeiro de 2009

Bianca

Eu teria levado flores, mas na verdade não sei bem por que. Já eram oito da manhã quando eu desisti de dormir e saí de casa na esperança de te ver. Primeiro ia comprar as flores – mas não sei, achei melhor comer alguma coisa antes. Ultimamente, tudo o que eu como tem um gosto amargo, parece limonada de ontem. Levei um tempo pra aceitar que era só isso que eu teria do meu pão com queijo. Pensava em tudo que eu queria te dizer – não bastaria levar flores? Dispensaria ao menos o cartão, diria pessoalmente: isso é só porque você telefonou no meu aniversário. Você acharia muita graça. São só umas flores do campo – eu tentaria despistar. Mas você entenderia.

Então no caminho eu me lembrei de que você tirou a semana de folga no trabalho. E isso complicava um pouco as coisas. Primeiro porque ainda não sei onde você mora, e segundo porque não podia correr o risco de dar de cara com o seu marido. Ele não entenderia. Mesmo que eu tivesse essa desculpa de entregar papéis sem importância, na sorte que eu tive do meu trabalho se cruzar com o seu em algum ponto, as flores ficariam deslocadas. Pesadas, maiores que a largura da porta. Fiquei um tempo rodando pela cidade sem saber pra onde ir ou o que fazer. Quem sabe uma flor qualquer roubada em um quintal? O certo era que eu iria até sua casa. E pra isso bastaria uma visita rápida a uma amiga em comum.

Tomei o caminho mais longo. Ainda não sabia a razão, mas era o próprio tempo quem estava me atrasando. Quando cheguei à porta do apartamento da Raquel, você estava ali, parada, com a mão apoiada ao lado do botão da campainha. Como foi bonito o seu sorriso por me ver chegar. Bem mais que as flores que eu não tinha. E talvez fosse melhor assim, porque só agora eu tinha uma ideia um pouco mais clara do que estava sentindo. A Raquel não estava? Tudo bem, eu disse – confessei que estava ali justamente porque queria o seu endereço, e recorri à desculpa dos papéis urgentes e desimportantes. Falamos naturalmente. Disse que precisava dos papéis preenchidos até o final da semana; você disse que estaria meio ocupada, revisando discursos do seu marido, mas que faria o possível pra me devolver antes da sexta.

Acho engraçado você levar a tal extremo a sua vidinha de esposa interiorana. Mas não disse nada – acho até que faz parte do seu encanto. Agradeci pela ligação no dia do meu aniversário, e só achei triste que nem passou pela sua cabeça que isso quase me fez te levar flores. Despedimo-nos sem mais o que dizer. Beijos no rosto, até depois, espero que você mande notícias. Entrei no carro me sentindo leve, alegre mesmo, saboreando a minha lucidez tranquila e inesperada.

Não sei por que perdi meu tempo querendo te falar em um espelho e por enigmas. Acho que são os outro que não têm a menor ideia de tudo que o amor permite. Porque não há nada de mais aqui, e pra mim estão bem claras as fronteiras do desejo. No fim, é só que eu tenho andado muito sozinha, e poucas coisas neste mundo são mais fáceis de se amar que o seu sorriso, minha querida Luiza. Esse seu claro sorriso gratuito. Como se estivesse cheio de motivos.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Material didático

Coração de gente é mundo muito grande pra se conhecer numa só vida. Terras sombrias, então – que essas não faltam – a cada passo se desdobram em milhões de novos mundos. Labirintos, pântanos, abismos em progressão geométrica. Frequentemente alguém se perde por ali, no bom e velho exercício de buscar saídas. Só que às vezes não buscam e não saem.

Alma de gente tem casulo – mas não é pra morte que a lagarta se retira. Sozinho no escuro, no medo e na dor, nem sempre a gente entende o puro instinto que prepara o voo. Porque voar é impossível – e disso, qualquer lagartinha sabe. Mas um dia a gente cansa e começa a arranhar as paredes. Até que alguma coisa se abre.

Cabeça de gente pode muito bem se virar pro alto – que estrela sim é um infinito que interessa.

Luz de gente não se ensina: se acende.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Retratos de sensação pura

1. Você segura o meu cabelo pra eu lavar o rosto, eu fecho os olhos e me demoro um pouco sentindo a água fria nas mãos.

2. Você pede desculpas por dormir – enquanto eu dirijo na estrada com sono e com chuva – mas dorme com a mão pousada sobre a minha perna.

3. Você se aninha nos meus braços, e por trás dos olhos eu começo a ver campos floridos, jardins de palácios, cascatas despencando sob um céu intensamente azul – mas não consigo te provar que são bonitos os teus paraísos.

4. A gente briga, e no primeiro reencontro eu descubro o que é saber de cor o teu corpo.

5. Você me pede pra eu nunca te deixar, mas só consigo dizer que vou te amar pra sempre.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Entre

Fechado em uma sala de ensaios, o mundo inteiro se resume aos corpos que expressam, ouvem e se tocam. As quatro paredes são de liberdade: tudo é possível quando objetos, ruas, saldos bancários e hiperlinks dão lugar a um ser humano diante de si mesmo. Um templo se define – etimologicamente, só existe religião no encontro. E nada invade um espaço sagrado, a não ser com os pés descalços. Vendo alguém dançar, e quando sei que essa dança é a mais pura expressão de um coração que ainda sente, basta cruzar um olhar, complementar um gesto, compor com o outro – e já não pode haver dúvidas de que Deus existe.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Pequena Alegoria

A aia do principezinho vagava pela imensidão do palácio sem ter com quem conversar. De companhia, apenas a criança que ela aprendia a amar a cada pouco – o menino orgulhoso e confundido pela ideia de que um dia seria rei. Passava com ele manhãs e tardes, descobrindo e arquitetando traços em comum – ela mesma sem lembranças de um amor de pai. Quando inventou de costurar para ele roupas de guerreiro, um pouco para amenizar a solidão das noites, foi porque já àquela altura conhecia bem os sonhos do menino. E foi assim que se lançou ao trabalho, a princípio cantando com alegria, depois espantada pelo fato de uma ideia tomar formas através de suas mãos. Prendia com cuidado cada uma das peças, cada uma das pedras do bordado, ora pensando se já não havia demasiado brilho, ora se o menino entenderia que era sua maneira de dizer que o amava. Quando a roupa ficou pronta, muito tempo depois, quase lhe pareceu que o príncipe era um outro, tão diferente daquele que ela imaginava no silêncio do seu quarto. Mas havia então uma luz nova e intensa nos olhinhos dele, correndo pelos cantos sobre montarias invisíveis, combatendo heroicamente os monstros de sua própria solidão, seguro e corajoso, um homenzinho inteiro e sorridente. E assim, quando ele veio cabisbaixo, uma das mangas da blusa nas mãos, e disse envergonhado que "rasgou durante uma batalha", ela conteve as lágrimas que vinham dos cuidados com a roupa, acariciou sua orelhinha com o polegar direito e se apressou em uma voz que já falhava: "Eu estava vendo".

domingo, 18 de janeiro de 2009

O ponto fixo

Minha alegria ingênua ainda não sabe pintar o rosto. Não se agita em praça pública, não tem coragem, não contagia. Odeia o calor da Bahia e não vê graça nenhuma no samba. Minha alegria ingênua vive só, cobre um boneco de travesseiros e sai de casa às duas da manhã. Vai ver estrelas; prefere voltar cedo. Minha alegria não bebe nem fuma, não ri de Almodóvar, não tem paciência pra Wilde. Não pisa na grama quando é proibido. Não acha ascendente e já não se deslumbra com coincidências. Minha alegria simplesmente habita a estória; devora o lobo; colhe morangos, serena, sob uma chuva intensa. Minha alegria ingênua ainda não sabe dançar por fora. E movimenta os dias.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Construção de cena casual

Um dia, estaremos sentados os dois olhando o mar – é absolutamente necessário que seja o mar – e eu te direi que nos velhos tempos... Não: você vai segurar a minha mão e sorriremos de puro afeto, relembrando em silêncio o dia em que nos conhecemos. Só então eu direi: Você me ensinou a não amar sozinho, sabe? Porque antes eu amava – mas isto eu não direi, é só subtexto – sem conseguir colocar pra fora. (Subtexto não importa, pode ser assim mal escrito.) Você vai apertar mais forte a minha mão, subitamente melancólica. Longa pausa enquanto o sol se põe. Depois você dirá – pode ser nesse tom, mas com um pouco mais de ênfase no "planejando": Aposto que você já estava planejando tudo isso. Com uma displicência calculada, eu vou dobrar o roteiro e responder: De todo jeito acaba sendo um improviso. Teus olhos vão brilhar de admiração: que grande ator eu sou. Mas quando eu te beijar, quem sabe, se as ondas se quebrarem com bastante força, nenhum de nós vai escutar gritarem "corta".

sábado, 10 de janeiro de 2009

Do olhar para si

Nos intervalos da paz recém conquistada, a velha ansiedade toma novas proporções: quando uma classe inteira de cuidados se esvai, resta sempre a questão de estar ou não fazendo a escolha certa. Assisto ao mundo ruir, do interior das casas ao pregão das bolsas, na indiferença à crise ambiental como ao convívio mais cotidiano. E sei que toda e qualquer mudança precisa começar por mim. Mas veja: por mais antiquado e moralista, o discurso do "amar ao próximo como a si mesmo" é um desafio quando ninguém ama a si mesmo o bastante. Por isso eu fico assim, sozinho, assustado, vasculhando em silêncio a minha alma. E me pergunto: será que eu consigo? Sem consumir, sem invadir espaços, sem esquecer que ferir o outro é boicotar o meu próprio barco? E pior, pior do que eu não conseguir: será possível que alguém mais consiga?