segunda-feira, 20 de julho de 2009

Das pequenas mudanças

Não deixe que te enganem, meu bebê: aqui não somos livres para acreditar em qualquer coisa. Dizer o contrário é só um recurso básico da hipnose. Não vá espalhando por aí que nosso amor é eterno e puro, que vivemos de brisa e de bondade ou que estamos semeando um mundo para a oitava geração depois da nossa: não se deve perturbar assim o sono de tanta gente. Qualquer verdade, bebê, em tempos tão confusos como os nossos, só deve ser passada adiante no mercado negro, dentro dos queijos ou dos tubos de pasta de dente. Até que um dia, às sete da manhã, depois de ver a própria cara sem brilho e amassada no espelho, um joão-ninguém vai reparar no despertar dos filhos e exclamar: "Não é que é mesmo!?"... e nossa última revolução será feita de pequenas implosões, não do contrário. Porque o mundo, bebê, o mundo real e esquecido é feito desses joão-ninguéns – de sua ternura contida, da esperança guardada, do encantamento abafado diante da beleza que persiste. Mas também não tenha pressa, meu bebê: nenhum trabalho importante é para ontem. Temos ainda muito tempo. Descanse em minha casa por enquanto, beba um chá, aceite um pedacinho deste queijo. Mastigue devagar e com prazer. Antes, e acima de tudo, não deixe que te vendam o seu medo – crescer demora, meu bebê, e o mundo desabar seria só o começo.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Não foi

Mas se anunciou com todas as letras em neon: felicidade, ou qualquer coisa assim – e se parecia mesmo à estrela cadente que uma vez atravessou o meu Natal, há muito tempo, quando eu apenas conhecia o mundo. Delicadamente azul; ligeira e de um fascínio absoluto. Fiz um pedido. Nada atendeu. Faltou o chão na hora do passo, a mão, o bolso, a chave de uma porta súbita. – Este menino não se acostumou ainda, vejam só, a ter o que era muito mais do que esperança, a ter certeza, a ser guiado por essa certeza luminosa e de repente estar em queda livre, só, no mais absurdo escuro, confuso, tonto, sem saber – que foi que aconteceu, meu Deus?! Ah, mas este menino que não cresce nunca... Eu tinha era vontade de escrever e de chorar, e de escrever chorando, e de chorar em cada palavra que escrevia; queria morrer, queria não ser, queria passar. Nada passou. A gente se acostuma a não ter sido. Sorri. E o gosto do sorriso é quase bom.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Teus olhos de longe

Não sei mais onde é a paisagem.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Definição

Menos que nada é quando o nada exagera. É um sobrepeso de nada, um nada que não se pode carregar sozinho. É quando o nada extrapola os limites do que é nada e ocupa espaços do que deveria ser alguma coisa, ou simplesmente fica ali impedindo que outra coisa seja mais que nada no lugar onde ele está. Menos que nada é um buraco negro no vazio do peito. É um aspirador ligado no meio do vácuo. É um nada consumindo o absolutamente nada.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Além das cordilheiras

Valquíria estava parada à porta com lágrimas nos olhos. Eu contemplava pela última vez a vasta planície de vegetação dourada que era preciso abandonar – o meu lugar sagrado, meu lar, minha colheita de sonhos. Sete pares de cavalos pastavam perto da pequena casa de madeira, exceto por Netuno, meu companheiro mais leal, que se mantinha imóvel ao meu lado como já soubesse que eu não estaria ali por muito tempo. Corri meus dedos por seu pelo branco e luminoso; um vento leve, ao mesmo tempo, agitou as folhas de eucaliptos que margeavam a estradinha de terra. Era a última chamada à minha partida. Valquíria desceu correndo os degraus da varanda para um novo abraço, enquanto Netuno disparava como um raio rumo às cordilheiras distantes. Valquíria tomou meu rosto entre as mãos: eu sorria, mas nada era capaz de desmentir o coração doído. Beijei-a. Meus braços envolveram sua cintura pela última vez.

– Me espera? – ela perguntou sem voz.

– Nem sei partir – eu disse.

Beijamo-nos. Os lábios de Valquíria tinham gosto de pêssego, de lágrimas, de uma união indissolúvel.

Quando eu viesse ao mundo, já nem me lembraria mais daquele gosto. Mas seria sempre alguma coisa assim como um vazio constante no meio da alma.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Entre lírios

Não gosto mais do que você dessa distância entre nós dois, Luana. Tenho certeza de que não foi isso que eu disse na outra carta. Os dias são serenos, sim, depois de tanto tempo longe; consigo amar de novo, rir de coisas bobas, chorar com um filme na TV. E ontem fiz um novo amigo. Um menino de uns dez anos que mora na casa ao lado. Ele me ajudou a carregar umas caixas para cima, depois ficou comigo conversando um pouco: ele gosta de batata frita, de chocolate branco e de Harry Potter; disse que passa muito tempo sozinho em casa, que quase não há meninos na vizinhança e que por isso ele vai voltar um dia desses com um jogo qualquer de tabuleiro. Gostaria que você estivesse aqui, Luana. Penso nisso todos os dias. A toda hora. Em cada letra. Na segunda-feira fui sozinho até o desfiladeiro, deviam ser umas duas da madrugada. Fiquei deitado vendo estrelas. Foi bonito. Fazia muito tempo que eu não via o céu assim tão limpo. Então eu acho que peguei no sono; sonhei com chuvas de verão, um grupo de alunos muito concentrados e o galope distante de um cavalo branco. Sei que uma hora falei “eu te amo” – você me ouvia?... O meu trabalho continua o mesmo. As mesmas caras, a má vontade de sempre, e papéis, e tinta, e nada. Mas quase já tenho dinheiro para comprar o meu piano. E sim, faço poemas. Não sei, Luana, por que foi preciso que você quase me odiasse. Que eu viesse embora; que não fosse mais do que memória a vida iluminada e sólida que tivemos no vale de Campomanso, entre lírios, repetindo aquelas promessas para tanto tempo. Mas vou voltar, um dia. Não faz sentido que eu não volte. E eu sei – por mais que você insista em me dizer que a vida segue em frente, que é até bom que eu possa te esquecer aos poucos, que não somos um do outro, que não foi nada mais que um sonho muito breve – eu sei, de toda a minha alma eu sei, ficaremos bem, e ficaremos juntos. Porque eu te amo desde sempre. Porque o teu nome tem gosto de pêssego. E porque mesmo aqui, tão longe, eu sinto a tua presença real e de repente uma certeza antiga de que nada mais me falta.