sábado, 31 de outubro de 2009

Terras da noite. Constelação dispersa, mar revolto.

Eu estava brigando com as seguintes palavras: foto, beijo, boca, joelho, dança, roupa, brinco, bola de chiclete.

E eu tinha um filho. Ele bagunçou um pouco as coisas, me fez chorar na primeira vez em que o deixei na escola. Foi mesmo assim. É bem verdade que eu morro de inveja das crianças, mas não é só delas, não. É de tudo aquilo que eu não posso ser. De tudo aquilo que eu só posso contemplar enquanto os outros são.

Mas assombrado pela teia de uns cabelos negros... sem conseguir dizer que ainda estou em mim. Até que o tempo passe e eu não precise fazer nada. Até que eu aprenda a deixar cair o meu castelo. Você brincou? Orou? Caiu? Você chegou em casa com o joelho sujo. Você chegou em casa com uma folha no cabelo.

Cabelos negros... é do ar da noite, não? Ao vento, um cavalo preto, em um lugar onde me vi perdido e de onde você me tirou. No ano de mil seiscentos e cinquenta e dois: olhos azuis, bosque, gravetos, e você me lembrou o meu filho e eu te levei para casa em minha carruagem suja. O tempo tem poeira, não? É um candelabro debaixo de um lençol, é um jogo de porcelana que uma avó deixou. Depois eu quase fui feliz em outra foto: Bosque do Papa, mil novecentos e oitenta e seis. Abraço. Família. Bolas de chiclete e futebol.

Onde eu parei?

Me lembro de você sentada no canto de um bar, olhando para mim. E os teus olhos brilhavam, e o teu cabelo era comprido e muito preto. Você era bonita. E a luz era azulada, e o bar era de blues.

Só muito mais tarde o azul de espera da televisão, e a voz arrastada do Tim Maia cantando "eu amo você... menina..."

Mas era mais verdade o João e Maria do Francisco.

Lembranças de uma flauta flutuante, e de você anotando em meu caderno este diálogo que é bom de ouvir:

– Faz um desenho?
– De quê?
– De uma laranja.
– Laranja?!
– ...
– ...
– Não, pode ser azul.
– Rá!
– Foi boa, né?
– Foi.
(...)

Eu vou gravar a fogo o teu nome em meu ouro.

Mas hoje... não sei. Havia uma pontada de tristeza em tua voz?

Envelhecer é ver as coisas se alargarem por dentro, e nada mais tem um só rosto, e tudo é sinuoso e sem fim, e eu já não sei se faz sentido eu fazer uma poesia tão limpa.

Seremos felizes?

Somos.

Eu vou transpor esse abismo de intrigas e palavras entre nós. Então quem sabe alguma coisa ande. Então quem sabe vibre em liberdade a perfeição do teu nome, do amor e da pele, pássaro e maçã.

São peças que se encaixam facilmente. E embora o seu desenho seja turvo, as minhas mãos lhe darão cores e luzes, e sopros de vida e de verdade.

Apenas... esteja lá.

Para que afinal saibamos se naufragar é preciso.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Nascer

As ideias sobre os objetos, os substantivos concretos estavam começando a me engolir. O arame farpado, os cadafalsos, os vidros de perfume, os formulários, os óculos para ver em 3D. Nada disso era matéria, mas puro pensamento sobre ela – palavras, estruturas abstratas. Diante dos meus olhos, só uma neblina muito densa. Haveria uma maneira – sim, era preciso que houvesse – haveria uma forma de entender a neblina apenas pelo tato, sem nem uma letra, nada, somente a sensação absoluta? Haveria um jeito de estar no mundo, e perceber as coisas, e ter algum conhecimento construído sem os símbolos – não mais que o tempo-agora do meu corpo? Ser algo assim como uma árvore móvel? Como um cordeiro? Abandonar-me sem receio à realidade interminavelmente silenciosa do Universo?

domingo, 4 de outubro de 2009

Festejo

Um dia você está lá, quieto no seu canto, pensando na chuva ou fazendo uma poesia parnasiana, e sem que você perceba o tempo vai tramando coisas reais e grandiosas para a sua vida. Você reúne bons amigos, desses que eventualmente aparecem, e numa noite qualquer de conversa furada vocês imaginam, sei lá, um festival de teatro que reúna grupos de toda a região e incentive a produção nas escolas, com várias oficinas simultâneas e espaços para discussões e trocas de experiências, palestras, grupos convidados, estéticas variadas, artistas amadores e profissionais num mesmo espaço e respirando teatro ao longo de toda uma semana.

Aí vem o silêncio. Você e seus amigos se entreolham, respiram fundo. "Isso não ia ser fácil", alguém diz. Novo silêncio. Novos olhares. Até que alguém bate na mesa e fala decidido: "Então é melhor a gente começar agora".

Acho que foi a Clarice Lispector que eu li uma vez dizendo que quando você quer chegar a um ponto é preciso trilhar caminhos muito diversos, inclusive no sentido oposto ao do ponto em que você quer chegar. E quando você luta para realizar um sonho, é impossível se manter à distância de tudo o que a realidade traz em si de pesadelo. A burocracia burra e a falta de dinheiro para um evento dessa natureza são quase irrelevantes, para mim, diante de questões humanas como ceticismo e arrogância, má vontade, oportunismo, estupidez, mesquinharia, etc, etc, etc. É como atravessar o inferno por uma fé meio vaga de que o paraíso ainda esteja à espera. É quase ser engolido pela máquina enquanto você se esquece do que queria quando começou a construí-la.

Mas quando tudo acontece, afinal, você descobre um pouco espantado que a realidade já não é mais tão diferente do sonho que você sonhou um dia...