quinta-feira, 29 de abril de 2010

Pequeno inventário

Ver a noite passar e ter a sensação de que não há ninguém no mundo. Ver o dia passar e ter feito o melhor que pude, mesmo que pareça pouco. Ter amigos tão completamente diferentes entre si que às vezes me perco, e penso que sou muitos de tanto me parecer a cada um deles. Ter amado loucamente, e ter perdido, e ter amado loucamente, e ter perdido – uma vez mais, e outra. Aprender a cada dia. Ensinar sem perceber. Ser teimoso, ser volúvel, ser ingênuo e mau, sonhar na luta, destruir distraído. Ouvir em silêncio. Confessar a todos. A bagunça em casa, a ordem alfabética dos livros, a gata branca que se chama Pluma por causa de uma música do Secos & Molhados. No vazio da sala, as paredes têm um anjo, trinta e três flores arrastadas pelo vento e um refrão do Oasis cuja tradução é "me apoie, ninguém sabe como vai ser". Algumas rugas. Boa memória, boa até demais. Quinze cadernos. Um violão quebrado. E a alma que não cabe em nada disso.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Como se tornar um escritor compulsivo

A ansiedade é um mar de cores muito vivas no qual eu tenho andado submerso, sempre demasiado opaco e sem conseguir me transformar em tudo quanto eu gostaria. Cada pequeno gesto me parece a última chance de alcançar qualquer felicidade; cada fracasso é um furacão que me devasta; cada hora vazia lança três bilhões de vezes o mesmo grito desde um corpo imóvel: que alguma coisa aconteça, que alguma coisa aconteça, que alguma coisa aconteça. Talvez fosse impossível não estar acontecendo alguma coisa o tempo todo. Talvez fosse impossível que tudo acontecesse ao mesmo tempo. Mas eu estou sufocando diante da janela aberta sobre uma paisagem gasta.

Eu vou pra Bahia, não, eu vou pra onde tem neve, não, eu vou pra um templo no Tibete ou dar a volta ao mundo em uma Harley Davidson.

Você tem um amigo a quem você pode contar absolutamente tudo? Há quanto tempo ninguém vê você chorando? Às seis horas da tarde, eu entro em casa e me apavoro com o grande nada que me separa da hora de dormir. É muita coisa guardada, é um caos de pensamentos e vontades sem espelho, sem nenhuma vazão, sem deixar nenhum vestígio no universo dos fatos. Você tem alguém contando histórias que você não quer ouvir? Você tem canais suficientes na sua TV a cabo?

A ansiedade é sempre um último cigarro. A ansiedade é engolir sem mastigar um prato congelado. A ansiedade é o telefone que não toca pra um convite que você recusaria à espera de outros. A ansiedade é uma merda. E saber disso não resolve nada.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Flui

Alguém em mim quer gritar uma dor muito antiga. Ele vem, coloca a mão pesada no meu peito e diz: (...) Eu já não ouço. A dor ainda dói, mas eu passeio pelas ruas e a cidade me parece muito cheia de um qualquer-coisa alegre, pequenas gotas de luz dançando no ar vazio, algo esquecido no fundo dos olhos de quem às vezes eu ainda me lembro de olhar. Eu nunca acreditei na solidão, pra dizer bem a verdade. Eu só jogava o seu jogo por achar que me faltava companhia. Agora, observando em silêncio o vai-e-vem dos corpos animados por estranhas forças, esse mar de gentes à procura de um descanso que não chega nunca, crianças oprimidas ainda pelo grande mistério do mundo eu penso: (...) Eu já não penso. Meu coração também pulsa. Tudo o que eu sou me basta.