quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Para uma amiga de infância

Sala de estar na penumbra, móveis envelhecidos, uma poltrona em frente à TV ligada. Vê-se apenas um braço segurando o controle remoto e eventualmente trocando o canal; passam notícias de diversas épocas: a morte da Princesa Diana, a construção de Brasília, Paris em maio de 68, a queda do Muro de Berlim e a do World Trade Center, etc. No meio da sala, no centro de um tapete colorido e circular, um adolescente dorme enrolado como um gato. A luminosidade que atravessa as cortinas indica que lá fora é dia. De repente, sons de panela batendo chegam da cozinha; o braço com o controle remoto se imobiliza.

– ... essa bagunça toda, Pedro – diz uma voz de mulher. Sons de passos: salto alto sobre um chão de madeira. A TV exibe um programa muito alegre do Chacrinha. – ... que você seja tão egoísta a este ponto, Pedro; mas pra mim chega, eu não fico nesta casa nem mais um minuto. – Mudança de canal: trechos de um filme qualquer do Kurosawa. Nova mudança: um importante jogo do campeonato irlandês de futebol. O homem pousa o controle remoto sobre o braço da poltrona. – ... não vai ter sobrado um único motivo de alegria nessa tua vidinha estúpida!

Escuridão. Vazio.

Locução de rádio em uma voz monótona, grave e arrastada: "um bom momento para investir na extração de petróleo, na indústria alimentícia e nas corridas de cavalo. Em um ano, o seu dinhero será no mínimo triplicado; em dez anos, você será citado como um exemplo de empreendedorismo pelos maiores especialistas da revista Forbes; em quinhentos anos"...

Jardim ensolarado. Flores. Pessoas passeando.

Estou acomodado em um banco. Aos meus pés, enrolado como um gato, o adolescente dorme. Uma moça se aproxima com um saco de pipocas. Senta-se ao meu lado, come em silêncio. De repente, ri e aponta para três meninos que se enrolam com a cauda de uma pipa. Olha para mim, oferece a pipoca. Eu recuso. Obrigado.

– Se você soubesse a falta que você me fez – eu digo. Ela come em silêncio, observando a paisagem. – A falta que você me fez, eu digo. – Estou cansado disso. Estou virando um eco de mim mesmo. Nada se altera. – Sem você, existe alguma coisa neste mundo que possa me deixar seguro?

A moça desaparece. O sol desaparece; não há ninguém mais no jardim, exceto eu e o gato enrolado em minhas pernas. Sons de trovão. Chuva forte. Quero gritar que eu preciso de ajuda, que eu não sei o que fazer comigo, que eu vou enlouquecer que eu vou morrer que eu vou chorar no meio do supermercado, que eu estou me dissolvendo na paisagem, que nada disso tem importância alguma, que eu já nem sei por que eu ainda me lamento, que eu estou bem, que é só uma chuva e que já está passando, que a vida é bela, que a vida é doce, que...

Um universo branco. O rosto de um adolescente: olhos bem abertos, expressão de malícia. O adolescente abre a boca. De dentro dela, um pouco empoeirada, escapa uma pequena borboleta, meio às tontas, com asas coloridas.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Religare

O corpo de Martina era o meu santuário. Quase não fazíamos amor: rezávamos. Nos primeiros cinco meses, em um apartamento na Santo Agostinho, aprendemos um com o outro os nossos cânticos e preces; depois saímos ampliar a nossa fé pela cidade. Nos sebos, disfarçados em um canto, reescrevemos a Bíblia e o Corão; na Reitoria, nas salas que encontrávamos desertas, desvendamos os segredos da Cabala e outras tradições esotéricas; nas praças, à noite, aprofundamo-nos em várias mitologias de tradição oral; nas escolas – sim, algumas vezes conseguimos invadir algumas escolas, e gostávamos especialmente das salas forradas por quebra-cabeças de EVA – travamos contato novamente com os cultos primitivos; e por fim nos prédios, nos condomínios fechados, no Memorial da Cidade, nos shoppings, nos correios, na prefeitura, em todas as obras em construção, públicas ou privadas, fomos pagãos liberais, burgueses, felizes e completamente alienados.

(Às vezes, cansados de nossa santidade heterodoxa, buscávamos o interior silencioso de alguma igreja onde, aliviados, pecávamos.)