quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Fortaleza em meio à selva

(Memórias)

Subir no muro do parquinho em busca de araçás. No fim da rua, em um condomínio fechado. Casinhas brancas de dois andares: a nossa era a primeira à esquerda de quem entrava. Encontrar um passarinho morto sob a escadaria. Não achar nenhuma graça em aulas de judô – aos dezessete, voltei àquela casa que era o meu jardim da infância e me pareceu que haviam reduzido muito o espaço. Ganhar uma bicicleta no palito do sorvete. Um fim de tarde, atravessando o viaduto ao lado da rodoviária, ouvir de meu pai uma história qualquer sobre um acidente de carro. Luzes de freio. Luzes. Por que eu me lembro dessas luzes com tamanha nitidez?

Meu pai dava plantões no Hospital Psiquiátrico. Eu não tinha mais que cinco anos: penumbra da memória, noites de poeira nos cenários só meus da capital paranaense. Um quarto pequeno, lâmpadas não muito fortes. Eu fui com ele, talvez mais de uma vez, passar a noite naquela casa de pessoas doentes – não loucos, eu não sabia ainda o que era isso; e meu pai era muito generoso por cuidar tão bem daquelas gentes. E ainda assim encontrar um tempo para estar comigo naquele quarto, jogando futebol de botão, assistindo a um Globo Repórter sobre os meios de sobreviver na selva. Um prato de lesmas, é tudo de que me lembro naquele programa. Por ser inédito, e não desagradável: um mundo novo, apenas, de uma estranheza colorida e fascinante.

Mas acho que dormi bem antes do final da reportagem.

domingo, 22 de novembro de 2009

A dor que deveras sente

Como se não fosse sempre sobre uma realidade pessoal, eu escrevia um conto utilizando a estrutura descrita pelo professor e baseado nas ideias de Baudrillard, com delicadas doses de naturalismo e citações de Catulo. Como se não fosse sempre para a menina sentada à minha frente; mas eu gostava mesmo de ouvir aquelas teorias sobre o foco narrativo, e parecia-me que faltavam apenas algumas aulas até que eu me tornasse um novo Proust ou Dostoiévski. O professor interrompeu a explicação para perguntar se alguém sentia cheiro de queimado. Mas não lhe dei atenção, porque eu estava distraído com as pontas verdes do cabelo de Yanna Karolina, sentada ao meu lado e, por sua vez, perdida na lembrança de uma tarde de verão em Londres no ano de mil novecentos e oitenta e sete. Acho que a Universidade pegou fogo. E eu não consegui terminar o meu conto – o que afinal foi o menor dos males. Eu lamentava muito mais o fato de que, dois andares abaixo, outro escritor acima da média estaria se sentindo um Saramago injustiçado enquanto suas obras completas e inéditas ardiam no fogo eterno das universidades federais.

Aí resolvi escrever esta historinha, só porque já estávamos mortos, mesmo, e eu queria dizer a ele que no fundo eu continuava achando tudo muito divertido. Ou só morreram os "eus-líricos" naquele incêndio? Ou a poesia não mereceria nunca revelar na prática a sua alma de combustão espontânea?

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O caminho

Eu ia recolhendo, aqui e ali, palavras e gestos que me respondessem a pergunta que eu calava. E pensava que, por precaução, seria preciso ainda calcular a intensidade e a pureza de sua entrega, como se só eu soubesse; como se o amor não fosse amor se diferente do que eu dava, e a minha medida fosse a única medida, e os meus gestos fossem os mais certos. Mas no cenário que eu criei, era impossível que você não reparasse: eu nunca tive muito mais que medo e solidão para lhe oferecer em troca. Esse era o meu rosto, por trás do último disfarce. O medo, e o meu vazio de não ter sido nunca verdadeiramente eu. Só um autoabandono. Quando você surgiu, há muito tempo, parecia afinal que alguma coisa em minha vida se justificava. Que se encaixavam as peças, e que o mundo voltava a girar com uma alegria suave, como lhe era próprio, como deveria ter sido desde o início. Por causa dos seus gestos e palavras sempre doces – que eu passei a perseguir como um desesperado – eu soube enfim que algum caminho era possível para chegar à paz interior, e que talvez, no caminho, o que eu chamava de vazio mostrasse a sua verdadeira natureza de uma luz eterna, acolhedora, viva – apenas invisível para os meus olhos de antes. E é assim mesmo. Mas foi um salto no escuro; um salto que eu me demorei demais para dar. Eu tinha medo da mais vaga possibilidade de você não me querer como eu era. E eu aprendi a roubar o seu carinho. Mas só mostrei de mim a parte que jamais o mereceu – até que você notasse, e me deixasse finalmente entregue ao "eu" que eu tanto demorei para admitir a mim mesmo.