quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Um lugar onde ficar para sempre

Senti pequenas pontadas em toda a mão quando toquei a laranja. Nas ruínas de São João Batista, um pouco antes, eu havia provado o fruto de um cacto chamado tuna, comestível segundo a plaquinha ao lado – mas a plaquinha não dizia nada sobre não usar as mãos para tirar os espinhos. Dessa vez, pensei, estaria seguro; mas quando tirei a laranja do galho, ouvi uma voz vinda de não sei onde:

– Quem disse que você podia?

Uns doze passos adiante, um pouco escondido pelas laranjeiras, um índio adolescente, mais ou menos de minha idade, olhava para mim com a cabeça erguida em tom de desafio.

– Foi um espírito da terra – eu disse devagar. – Você não ouviu?

O índio deu uma sonora gargalhada e caminhou em minha direção. Estávamos no sítio arqueológico de São Miguel Arcanjo, o mais bem conservado da região das Missões, numa manhã calma e ensolarada de sábado. O menino se chamava André e estava acompanhado por sua irmã mais nova, Rute, que de início preferiu ficar à distância me observando. Contei a eles que já tinha estado ali na tarde anterior, mas que naquela manhã, com tempo livre e o pouco de dinheiro que meus pais me deram, tinha resolvido voltar e aproveitar a boa energia do sítio para escrever poemas. E ficamos assim durante algumas horas, André contando histórias do lugar e de Sepé Tiaraju, eu falando de São Paulo e das comodidades dos shoppings, Rute folheando em silêncio o meu caderno de poemas.

– Você precisa ver este lugar à noite – disse André a certa altura. Rute ergueu os olhos para o céu e, com uma voz muito baixa, acrescentou:

– Hoje à noite vai estar bonito.

André explicou que eles sabiam de um jeito de entrar sem serem vistos, e sugeriu que eu fosse me encontrar com eles perto dali um pouco antes da meia-noite. Aceitei de imediato. Sabia que todos estariam dormindo, porque viajaríamos bem cedo na manhã seguinte, e assim eu não teria dificuldade em despistar meus pais. Quando me despedi, confirmando que os encontraria no local indicado, mal reparei nos olhos tristes de Rute ao me beijar no rosto.

Passei a tarde com meus pais em Santo Ângelo, sem mais ver muita graça no ambiente urbano e desejando ardentemente que a noite chegasse logo. Sentado em um banco da praça, enquanto meus pais compravam ponchos que nunca teríamos coragem de usar em São Paulo, escrevi um longo poema sobre um lugar iluminado de sonho e memória, um lugar onde ficar para sempre: o pequeno paraíso em que povos de culturas diferentes ensaiaram, havia tanto tempo, uma convivência harmoniosa que nunca tinha chegado a se concretizar de fato.

À noite, na hora marcada, esperei por André e Rute com aquela sensação irrecuperável de aventura adolescente. Fazia frio, e eu estava cansado de um dia muito longo, mas tinha certeza de que poderia passar a noite ali sem o menor vestígio de sono. Um pouco depois da meia-noite, com um poncho cor-de-rosa combinando com o gorro, Rute dobrou a esquina e caminhou sozinha em minha direção, sem olhar para mim até que estivesse a menos de três passos, quando informou, com a mesma voz baixa que eu ouvira naquela manhã:

– Meu irmão não vem.

Por um segundo, achei que a aventura da noite estava cancelada. Mas depois, sem dizer mais nada, com uma segurança que até então eu nem imaginava que veria nela, Rute me pegou pela mão e me conduziu direto para o interior do sítio. Levou-me até um ponto relativamente protegido pelas árvores onde, segundo ela, seria impossível sermos surpreendidos pelo vigia, e sugeriu que nos deitássemos usando nossos ponchos como cobertores. Eu era guiado sem resistência, um pouco surpreso, mas ao mesmo tempo estranhamente à vontade. Quando rompi o silêncio e, já deitado, comecei a conversar sobre as constelações que eu conhecia pelo nome, apesar de nunca tê-las visto no céu de São Paulo, parecia que estivera ali desde sempre, ao lado de Rute, sob aquele céu absurdamente amplo e branco de estrelas.

– E não é mesmo um lugar onde ficar para sempre? – perguntou Rute.

Olhei para ela um pouco confuso. Ela sabia do que estava falando, embora o poema não estivesse ainda em meu caderno quando ela o pegou de manhã. Olhava para mim com os mesmos olhos tristes de quando nos despedimos, mas sem hesitar, sem desviar-se dos meus nem por um segundo. E então, movido por uma força que não vinha de mim, mas dos séculos, passei o braço sobre sua cintura e a puxei para mais perto.

Foi minha primeira noite de amor, e estou certo de que foi também a dela. Nervosos e sem jeito, ríamos como crianças; e ela reclamava que as minha mãos estavam frias, e eu reclamava que as minhas mãos doíam com os espinhos da tuna – mas nos beijávamos continuamente, e ríamos de novo, e renovávamos o amor e a eternidade sob o calor dos nossos ponchos.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Para dizer coisas azuis

Primeiro: sopre uma palavra qualquer dentro de uma bolinha de sabão. Não pronuncie em voz alta. Não escolha. Só pense na palavra e sopre.

Segundo: só chore se for por acaso. Não invoque uma tristeza que já está suficientemente presente nos momentos bons. Prefira acreditar que hoje é mais ou menos o dia mais feliz de sua vida.

Terceiro: tenha uns dois ou três amigos por perto, para o caso de acabar chorando.

Quarto: perceba que você ainda é criança em algum lugar. Olhe o mundo desse jeito – sendo criança – mas não diga nada a ninguém. Deixe o tempo formular combinações melhores entre ontem e hoje.

Quinto: ame como um louco. Morra de amor, grite, esperneie. Depois espere vir a noite e a chuva e saia para dançar sozinho, sem nenhuma pressa.