sexta-feira, 10 de abril de 2009

A terceira noite

Na terceira noite de solidão, as coisas já não eram mais tão divertidas como nas outras duas. Viu-se de repente no centro da sala entre girassóis de plástico, versos de Cecília, porta-retratos vazios, um copo de conhaque, álbuns do Legião Urbana, pratos sujos, um par de meias, controles remotos, almofadas de renda, um violão, um abajur, um lápis, uma teia, o tapete, o cobertor azul, a tela da TV, o tédio e aquela ausência aterradora de outro corpo.

Na terceira noite de solidão, a vida se cansou do fato de poder ser qualquer coisa. Pensou em escrever sua quadragésima carta de suicídio, em telefonar para desconhecidos, em publicar um livro de sonetos, em botar fogo na casa, em alugar um filme, em escalar um paredão de pedra, em atirar ovos em vira-latas, em não tomar um porre, em procurar no orkut a antepenúltima namorada, em adotar uma menina chinesa, em dormir debaixo do chuveiro, em comprar um video-game, em arrumar o quarto, em ficar catatônico, em fazer uma apresentação em Power Point com um texto ruim atribuído a Shakespeare, em seduzir, em se deixar ser reduzido, em inventar o que fosse para não ter que perceber aquela ausência aterradora de apenas outro corpo.

Na terceira noite de solidão, a lógica se diluía por completo. Começou a elaborar um único romance que incluía amnésias induzidas, profecias maias, sofrimentos de um bobo-da-corte, namoros secretos entre adolescentes primos de terceiro grau, doze carnavais, sete viagens no tempo rumo a um único dia, uma cantora de ópera, um pequeno tornado, alusões ao Canto dos Centauros do Inferno de Dante, luta de classes, uma voz incorpórea percebida como "quente e açucarada" por um homem enlouquecido em sua oitava noite de solidão, comentários técnicos sobre a arquitetura dos prédios mais antigos de Buenos Aires, uma rosa, um capítulo inteiro descrevendo os movimentos aleatórios dos peixes em determinado ponto do oceano, astronautas que descobrem que nunca mais poderão voltar à Terra, esportes radicais, instrumentos de tortura, mágoas, mangás e duas xícaras de cappuccino fumegante.

3 comentários:

Anônimo disse...

assim entendemos como as solidões podem vir bem acompanhadas.

Vizionario disse...

Então...

Vizionario disse...

como eu queria postar, por motivos óbvios, o terceiro comentário, favor (des)considerar o anterior.

O tema é perfeito, a numerologia bate, e o final pra cima compensa a sensação inicial que tive de mais uma contemplada conjunta ao abismo.

Porém, se o paralelo é entre a ausência aterradora de outro corpo, discordo do(a) colega acima, e afirmo que não há algo como solidão bem acompanhada.

Na ausência aterradora de outro corpo você pode abraçar o travesseiro, escrever um texto embriagado, atualizar todas as leituras atrasadas do mundo. Mas isso só funciona até a segunda noite de solidão.