domingo, 8 de março de 2009

Oferendas possíveis

Nem reparou na mancha negra que deixou com o dedo no botão da campainha. Olhava em volta com certa avidez, à procura de galinhas no quintal – não fazia sentido não haver nenhuma – e observou atentamente alguns detalhes da arquitetura da casa. Demorou para perceber a porta entreaberta, o rosto claro que se espremia no espaço limitado por uma corrente, o olhar de receio que ele conhecia tão bem. O menino não teria mais que doze anos. Passou a mão pelos cabelos, pigarreou, tentou parecer confiável.

– Pode dar uma maçã – disse.

Deveria ter soado mais como uma pergunta. O menino arregalou os olhos, grunhiu alguma coisa como "espera um pouco" e tornou a fechar a porta. O ruído seguinte era o de duas voltas com a chave. O homem bêbado, sujo e maltrapilho desabou sobre o degrau da varanda e escondeu o rosto para chorar. Era mesmo um exagero imaginar que teria entrado na casa. Ficou ali por um bom tempo, sensivelmente mais embriagado com a avalanche de velhas sensações, até que a voz distante do menino veio chamar-lhe de volta ao momento presente.

– O senhor não vai poder ficar aqui – dizia ele.

Estava usando roupas de escoteiro. Olhava firme para o visitante, agora com a porta totalmente aberta, e segurava uma maçã na mão direita. O homem ficou de pé e se permitiu uma olhada rápida para o interior da casa. O menino recuou um passo; ergueu a fruta em direção a ele, como se dissesse que era tudo o que ele poderia levar. Ele pegou a maçã e imediatamente levou-a à boca.

– Mas o senhor precisa ir comer lá fora – insistiu o menino.

O homem olhava para ele quase com desinteresse. Continuou a mastigar sem se mover um passo, e quando terminou disse tranquilamente, numa voz que então soou mais limpa:

– Morei aqui tinha a sua idade. – Fez uma pausa, agitou a maçã no ar e acrescentou: – Eu que plantei essa macieira no quintal dos fundos.

O menino pareceu atordoado. Para o homem, era o bastante: a confirmação final de sua vitória. Sorriu brevemente, inclinou a cabeça em sinal de agradecimento e seguiu cambaleando em direção à rua.

Quando ele desapareceu, o escoteiro calculou que aquela boa ação deveria valer por pelo menos uns dois meses. E a perfeição foi justamente não ter dito nada. Mas o fato era que não havia macieira alguma no quintal dos fundos.

4 comentários:

Vizionario disse...

Agora sim!

Perfeito!

Uma das melhores primeiras-frases que eu já li. Não tinha como terminar mal.

Bem vindo de volta...

Namorada disse...

Desta vez sou eu que concordo com o colega vizionario acima!
Mas, o final é ainda melhor!

É isso aí, chega de cartas de amor lançadas ao longo da avenida...

Carol Brunoni disse...

Olha gente, sei que as vezes é pesado, mas eu gosto do lado lírico, pelo desabafo e transparência corajosa que revela.
Diria que é como uma necessidade fisiológica, tem que por pra fora... :)

Ju disse...

áh, vc continua gênio com as palavras... meu poeta preferido!
beijooooooooooO.
: )