sábado, 12 de fevereiro de 2011

Jornada

1. A cabeça encostada na janela do ônibus, chove lá fora e não sei se estou triste por estar longe de casa ou por achar que nunca a tive. O mundo dá voltas, corre o asfalto sob o meu corpo imóvel e faz um frio insuportável em todos os lugares. Parado diante de um guichê na próxima rodoviária, eu ficaria eternamente sem sequer me perguntar "pra onde, agora?", porque a vida é muito assustadora na modalidade de poder ser tudo. Ser livre é desgastante; mas não adianta, não consigo dormir em viagens.

2. Leio uma história didática chamada Educação ou Culpa, meio boba até, mas com uma capa bonita de couro verde e detalhes em dourado. Um menino vai passar as férias de verão com a família de um padrinho, e logo nos primeiros dias quebra um vaso da sala em uma brincadeira. O padrinho proíbe todo mundo de se aproximar dos cacos; o menino entende que é pra que ele não se esqueça de ter sido irresponsável e saiba se comportar melhor dali pra frente. Os dias seguintes vêm em clima de tortura psicológica: ninguém mais fala sobre o assunto, mas o menino percebe que todos o observam de canto e acha que sua presença ali já não é muito bem vinda. A culpa pelo acidente com o vaso atinge um grau de delírio na noite em que a filha do padrinho cai sobre os cacos e se machuca seriamente. Naquela noite, quando todos dormem, o menino vai em transe até a sala e começa a retalhar o próprio corpo. Sangra até perder os sentidos; acorda na manhã seguinte com o padrinho ao seu lado em um quarto de hospital. E finalmente pede desculpas, chora, explica-se, faz sua catarse. O homem não responde, meio constrangido e fragilizado, o que desperta uma raiva inesperada no menino: "Por quê", ele explode então, "por que você fez questão de deixar os cacos na sala?". O homem passa a mão pela testa, hesita, depois responde como se pedisse desculpas por ter tido uma ideia idiota: "Eu deixei lá pra que você varresse".

3. No quarto de um hotel barato na beira da estrada, tentando colocar ordem no caos. A luz é tão fraca que mal consigo enxergar o meu rosto do outro lado do espelho. E tenho ainda uma longa caminhada. Desenho uma runa com o canivete no tampo da escrivaninha: Nauthiz, situações perigosas.

4. Pensar que um dia estivemos completos, na infância talvez, seria o mesmo que dizer que ao longo da vida só o que fazemos é perder pedaços, ir apagando aos poucos. Não quero, não posso pensar assim; preciso seguir adiante, agora, sem nem perguntar o nome daquilo que se perde. Alguma coisa terá que morrer, eu sei. Mas outra coisa espera pra ser conquistada.

5. Pela janela do quarto, ouço a voz da Alice de Lewis Carroll num terreno baldio: "Não, já decidi: se sou Mabel, vou ficar aqui embaixo! Não vai adiantar nada eles enfiarem as cabeças para baixo e dizerem: 'Venha para cima querida!'. Vou olhar para cima e dizer: 'Quem eu sou então? Primeiro me digam isso, e depois, se eu não gostar, vou ficar aqui embaixo até ser outra pessoa'..."

6. Muito antes de eu ter me tornado um Mago, já tinha ouvido algumas lendas sobre a Flor de Vidro: uma peça mágica tão poderosa que daria àquele que a possuísse tudo de que ele sente falta. Dediquei muitos anos à sua procura, ridicularizado pelos meus irmãos, eu mesmo muitas vezes duvidando seriamente de sua existência; até que a encontrei, nem tão escondida assim, no porão de uma casinha próxima ao farol de Blavand, na Dinamarca. Por sorte, antes que eu a tomasse com um gesto de triunfo, reparei em um bilhete envelhecido do seu lado: a Flor de Vidro é extremamente frágil, e ainda não está pronta. Ela precisa ser banhada em um lago branco que não sei onde fica, e só depois disso é que estará de posse dos seus plenos poderes. E foi assim que a minha bênção se tornou maldição: agora mal consigo dar um passo sem temer que ela se quebre, e que esteja perdida assim a minha única chance de ter tudo o que me falta. Uma ansiedade louca, um pavor quase incontrolável vigia os meus gestos. Antes de me dar os paraísos que eu quero, a Flor de Vidro me oferece o inferno do mais absoluto medo.

7. "Mas se eu vencer esse medo", eu me pergunto, "não estarei conquistando em mim mesmo tudo o que me falta?"

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